RODRIGO FONSECA É noite de "Pérola" em Aruanda, um dos festivais de maior prestígio hoje no Brasil, aclamado pelo empenho de seus curadores, Lúcio Villar e Amilton Pinheiro, em combinar reflexões da academia (a UFPB) com inspirações do mercado, para as telas da Paraíba. Aplaudido de pé em sua passagem pelo Festival do Rio, em outubro, o segundo longa de Murilo Benício no posto de realizador é Ettore Scola na veia. Trata-se de uma comédia triste, como aquelas que os italianos faziam, de 1950 ao fim dos anos 1970. É "Nós Que Nos Amávamos Tanto", só que em Bauru, em parte por seguir a Scola Mauro Rasi de afetos, no corpo a corpo com a dramaturgia de evasão do dramaturgo paulista. Reverente ao Teatro como um lugar milenar de saber, onde fez joias como "Dois Na Gangorra" (em 2003), Benício volta ao cargo de realizador, cinco anos após o "O Beijo No Asfalto" (2017), reproduzindo nas telas as experiências sensoriais que teve com a peça de Rasi. O texto teatral dele foi bem adaptado como roteiro por Adriana Falcão, Marcelo Saback e Jô Abdu. Rasi está ali, mas sob o filtro de um diálogo - consciente ou não - do diretor como uma forma de fazer rir pela via da saudade, do tempo perdido (e redescoberto), dos interditos morais. É Proust com gelo e limão. Benício segue a mesma via explorada com glória e graça por Scola na terceira (e última) fase do neorrealismo, que usava o humor casado com o pranto para cartografar os desassossegos de um mundo onde os poetas não têm direito a pertencimento. É esse o tema do personagem que funciona como um alter ego de Rasi, que Léo Fernandes defende com delicadeza. Candidatando-se aos prêmios de Aruanda, ele brilha no papel do jovem que se expressa por poemas, sonha em viver como dramaturgo e nota que Bauru se achatou para ele. Teme assumir sua homoafetividade por medo de olhares pontiagudos que tragam o tétano da intolerância. Mas há um cordão emotivo que o prende, umbilicalmente, à sua cidade de berço: uma mãe que reluz na composição cheia de viço de Drica Moraes.
Outro italiano, amigão de Ettore, um tal de Fellini, dizia: "A pérola é a autobiografia da ostra, assim como toda obra de arte é a autobiografia de seu autor". Por isso, "Pérola" é a joia de autoimolação e de autorreconhecimento de Rasi: é lá que ele se desenha a partir da memória de sua mãe. Quando começou a escrever esse fenômeno teatral, visto por 200 mil pagantes, numa carpintaria autobiográfica estruturada em 1994, Mauro foi beber da literatura. "Sinto-me um pouco como 'Tieta', do Jorge Amado, um pouco como a velha senhora", dizia o dramaturgo, agora homenageado pelo Tenório de "Pantanal", num devir cineasta. Na fotografia de Kika Cunha (exuberante) e na direção de arte (detalhista e cuidadosa) de Valéria Costa, Murilo tem a medida precisa de tensão dos passados que tenta recriar, mostrando Rasi quando criança, aborrescente e adulto. O riso é garantido nas tiradas que Drica troca num amálgama de excelência com Rodolfo Vaz, no papel de um pai apaixonado que sabe fazer vários tipos de caipirinha. Cada gole deles é uma cumplicidade. Cada gole ressalta a maturidade de Murilo na escolha dos planos. Tem uma declaração que Ettore deu a este que voz tecla o autor do P de Pop, numa entrevista de 2008, em que falava: "É possível entender a grandeza do cinema em analogia ao petróleo. Às vezes, a fonte seca. Mas eu prefiro comparar a fase que o cinema atravessa às estações do ano. Algumas dão flores, outras não. Há uma jovem guarda filmando, apesar das dificuldades. É isso o que mais importa". O que Murilo Benício faz em "Pérola" é deixar as pétalas de um cinema popular avesso a fórmulas desabrocharem. E Drica é sua corola, a perfurmar nosso audiovisual com sua força de invenção. Que Aruanda entre em erupção com um filme tão bonito. O festival paraibano termina nesta quarta-feira.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.