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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Perpétuo Godard

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Por Rodrigo Fonseca

RODRIGO FONSECA De luto, a redação da "Cahiers du Cinéma" abriu esta terça-feira com um post de adeus cheio de carinho em homenagem ao legado do franco-suíço Jean-Luc Godard. Sua morte, aos 91 anos, é um happening, nestes tempos sufocados de fake news. O crítico português Hugo Gomes certa vez afirmou: "O cinema morreu no momento em que Godard parou de acreditar nele". Mas essa dita "perda" de potência da arte cinematográfica foi, na prática, um truque que o realizador de "Uma Mulher é Uma Mulher" (1961) encontrou para fazer mais uma de suas muitas revoluções. Exibido na disputa pelo Leão de Ouro de Veneza, "Pedro, o Louco", como "Pierrot Le Fou" é chamado em telas portuguesas, foi um dos pilares da narrativa godardiana, exibido em 2004 no Cine Paissandu e projetado em 2021, no encerramento do Festival do Rio. Capaz de evocar os feitos do casal de criminosos Bonnie Parker e Clyde Barrow, sua trama, derivada do romance "Obsession", de Lionel White, é centrada no empenho do entediado Fernand Griffon, o "Pierrô" (Belmondo) para mudar de vida ao reencontrar uma ex-namorada, Marianne (Anna Karina), que está sendo caçada por gangsteres. A sequência em que os dois cantam "Ma Ligne de Chance" é um dos momentos mais encantadores da História do Cinema, com destaque para a era chamada de "cinemanivista", quando Godard, François Truffaut, Agnès Varda e mais uma turma de intelectuais com aspirações de contar histórias fundou a Nouvelle Vague, um movimento de revisionismo das estratégias de narrar, a partir da percepção do filme como um processo revolucionário. "As pessoas andam me perguntando sobre 1968, mas o que eu posso dizer desse assunto é que faço parte de um tempo no qual não se aprendia cinema em escolas, mas sim vendo filmes... às vezes os filmes mais obscuros... e tentando extrair sentido deles, isolando cada imagem", afirmou o cineasta, ao ser premiado em Cannes com uma Palma Honorária por "Imagem e Palavra" (2018).

 Foto: Estadão

Em outubro de 2019, a "Cahiers du Cinéma" dedicou sua capa ao diretor de carona na chegada de "Imagem e palavra" a um pequeno circuito francês e ao menu da Netflix. "Le livre d'image" - com cenas do clássico "Johnny Guitar" (1954), de Nicholas Ray, em seu explosivo miolo semiótico - conquistou uma Palma de Ouro Especial no Festival de Cannes de 2018. No dia 18 de setembro do ano passado, os críticos Stéphane Delorme Joachim Lepastier bateram um longo papo com o octogenário filósofo da cinemática. A dupla arranca dele reflexões sobre realizadores que merecem uma revisão (como Frank Borzage, de "Depois do casamento" e "Homens de Amanhã") e sobre atrizes capazes de desafiar paradigmas dos códigos de naturalismo (como Adèle Haenel). E fala muito, durante a conversa, sobre dogmas da produção digital. Há três anos, em Cannes, o homem por trás de "O desprezo" (1963) concedeu uma coletiva de imprensa virtual via Facetime. Ele recusou-se a sair do pequeno escritório onde trabalha, na Suíça, e conversou com a imprensa por Skype, abrindo reflexões sobre o onipresente imperialismo do cinema americano. Enfim, é o que ele sempre fez, desde "Acossado", pelo qual ganhou a láurea de Melhor Direção na Berlinale, em 1961. Nas paredes do Palais des Festivals e nas fachadas dos hotéis do balneário, em 2018, encontravam-se cartazes reproduzindo uma imagem construída por ele em 1965, com Anna Karina e Jean-Paul Belmondo ensaiando um beijo em "Pierrot le fou", aqui traduzido como "O Demônio das 11 Horas". Aquela cena traduz a irreverência dos nouvellevaguianos (Agnès Varda, François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette) na defesa da tese de que o cinema somente poderá fazer revoluções se revolucionar cotidianamente a si mesmo, como forma e conteúdo. Até hoje, ele trabalha assim. "As pessoas andam me perguntando sobre 1968, mas o que eu posso dizer desse assunto é que faço parte de um tempo no qual não se aprendia cinema em escolas, mas sim vendo filmes... às vezes os filmes mais obscuros... e tentando extrair sentido deles, isolando cada imagem", disse Godard. Pigarreando e tossindo sem parar, ele era visto pela Croisette de um pequeno celular, colocado diante de um microfone no qual cada jornalista fazia uma pergunta. "O que me desaponta é ver tanta gente da Rússia, do Japão, da Itália falando Inglês, em um evento destes, na França, em vez de falar em seu idioma original. Isso me faz pensar numa frase que li num livro: 'as democracias modernas tornaram a política uma pratica do pensamento separada das demais áreas do saber'. Por isso o totalitarismo esta ai e ele pode se manifestar até na ficção, com a escolha de um ator que simbolize certos valores totalitários", disse ele, que foi homenageado pelo poeta carioca Armando Freitas Filho com os versos de "Riviera", no livro "Lar,", da Cia das Letras.

 Foto: Estadão

Existem astros imagens de astros hollywoodianos em "Le livre d'image", entre eles Joan Crawford, Paul Newman e Sterling Hayden. Ah! E é possível ver um frame do "Tubarão", de Spielberg. Mas são apenas citações cinéfilas, que vão se descontruindo conforme Godard vai superpondo a elas uma narração filosófica. "A televisão nos deu uma ilusão perigosa de que o papel do som no audiovisual é reiterar o que estamos vendo, de modo a não abrir espaço para a dúvida. O som, no cinema, precisa ser pensado de outra forma, autônoma, como se fosse um organismo à parte da imagem. Complementar, claro, mas com significação em si", diz Godard, que acompanhado de seu mais fiel companheiro, um charuto, falou a Cannes de seu desejo de seguir filmando, apesar da tosse seca em sua garganta e da presença de Trump no comando da Casa Branca. "Continuar trabalhando é algo que, no meu caso, depende apenas de minhas pernas deixarem e meus olhos ajudarem. Acredito ainda num cinema que surge como um comentário às imagens, mais ou menos como os irmãos Lumière documentaram a chegada do trem na estação, nos primeiros filmes feitos pela Humanidade: eles deslocaram um objeto de lugar. Isso é coisa parecida como o que Paul Cézanne fazia coma a luz e com a cor em seus quadros. A cor de Cézanne é violência... e é luz. 'Le Livre d'image' é isso também".

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