RODRIGO FONSECA Canteiro de semeadura da arte de ler livros, o Clube de Leitura do CCBB 2023, organizado por Suzana Vargas, vai receber Raduan Nassar como homenageado da próxima edição do evento, no dia 14 de junho, às 17h30. Um dos livros de Raduan - "Menina A Caminho", "Um Copo de Cólera" e "Lavoura Arcaica" - vai ser tema de uma conversa entre o cineasta Luiz Fernando Carvalho e o professor Ítalo Moriconi. O livro será escolhido pelo público numa votação iniciada no dia 11, que es estende até o fim desta sexta, em enquete no Instagram do Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro "Nassar coloca pela primeira vez com toda a crueza, sublinhada pela poesia, a nossa condição humana tão frágil quando impulsionada por seus instintos mais primitivos", diz Suzana. É importante falar algumas palavras sobre a adaptação mais famosa de Nassar para o cinema, que fez de Luiz Fernando galgar o panteão das grandes direções no início dos anos 2000. Sua versão para "Lavoura Arcaica" é de 2011. Arriscaria dizer que é o filme mais potente, em termos de investigação de linguagem, feito no país neste século. Atualmente grávido de "A Paixão Segundo GH", adaptação do romance homônimo de Clarice Lispector (já rodado e montado), Luiz Fernando consagrou seu nome na televisão, nos anos 1990. Tornou-se o mais revolucionário diretor novelas e microsséries que a TV brasileira já conheceu. Saído de folhetins e de especiais cultuados como "Renascer" (1993) e "Os Homens Querem Paz" (1991), Carvalho enveredou pelos longas dialogando, a partir de imagens em movimento, com um marco da literatura nacional, a tal "lavoura" de Raduan Nassar, publicada em 1975. Em seu lançamento, a produção revolucionou todas as noções plásticas e filosóficas da arte de contar histórias com uma câmera, na fricção do Tempo e do Espaço, conquistando 52 prêmios planeta adentro. Conquistou troféus em Biarritz, Montreal, Lima, Havana, Trieste, Valdívia e em mais uma penca de cidades - incluído Brasília, de onde saiu com seis Candangos. Espécie de estudo semiológico sobre a instituição família e sobre a ancestralidade, "Lavoura Arcaica" provoca um misto de euforia e desalento, quase como em um paradoxo. E as duas sensações são afluentes de uma mesma e caudalosa água: a liquidez da transgressão. A euforia se dá pelo fato de o choque estético causado pela prosa de Nassar em Luiz Fernando ter conduzido o cineasta a filmar da maneira mais pessoal possível, sem fronteiras mercadológicas e sem compromissos teóricos. A razão do desalento: a incômoda impressão de o longa parecer um caso isolado de invenção em nosso cinema, de uma potência jamais igualada.
Exuberante, o trabalho de Luiz Fernando talvez constituísse uma exceção mesmo na pangéia latino-americana, capaz de se amalgamar a outros poucos gestos cinéfilos do continente, como "Hamaca paraguya", de Paz Encina, egresso de Asunción, em 2006; "Post Tenebras Lux", do mexicano Carlos Reygadas, em 2012; e "O Abraço da Serpente", do colombiano Ciro Guerra, em 2015. Poucos foram os realizadores que se devotaram tanto à busca por uma sintaxe inovadora capaz de conciliar a fúria criativa da palavra literária com o apetite voraz da câmera. A feliz comparação deste diálogo do audiovisual com o texto de Raduan Nassar com "Limite" (1931), de Mario Peixoto, apontada em sua estreia, no site "No.", pelo crítico Carlos Alberto Mattos torna-se ainda mais pertinente conforme a produção contabiliza primaveras. Ambos falam de tempo. Ambos tratam tempo como Tempo, com o T maísculo que ressalta sua divindade. Para Peixoto e Luiz Fernando, o Tempo é quase um deus. Uma força demiúrgica que parece violar os Homens em sua fome de vitalidade, mas que é capaz de compensá-los com a iluminação, com o conhecimento. É sobre isso que versa a parábola do jovem André (Selton Mello) que quer ser profeta de sua própria história. Ela versa sobre a incapacidade que o ser humano tem de aprender com a Eternidade, dançando sua música sem se submeter a passos rígidos. Fotografado de modo feérico por Walter Carvalho, "Lavoura arcaica", o filme, tenta traduzir em um jorro imagético a importância da ancestralidade no caminho de cada um, tendo um soberbo Raul Cortez no papel de um pai controlador, que não entende o desejo de André em ganhar o mundo. Entende menos ainda a fúria nos instintos da filha vivida por Simone Spoladore. A trilha sonora é de Marco Antônio Guimarães.
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