RODRIGO FONSECA Empenhado na finalização da terceira parte de uma trilogia iniciada com "Os Fuzis" e seguida por "A Queda" (ambos laureados com o Urso de Prata da Berlinale, um em 1964; o outro, em 1978), chamada "A Fúria", o moçambicano Ruy Guerra embrenhou-se pela metafísica que existe entre a plenitude da Matemática e as acelerações da Física. Foi parar lá quando idealizou "Estorvo", pelo qual foi indicado à Palma de Ouro de 2000). Nesse espaço, ele vem caçando novas formas algébricas de falar de "amor" e de "sonho". O primeiro substantivo é a argamassa de suas canções, como compositor. O segundo é o alicerce de todos os seus filmes, tanto aqueles fincados no realismo (caso de "Os Cafajestes") quanto os mais flutuantes ("Quase Memória"). É o indício de que sua dramaturgia tem vértices na geometria da abstração. Haveria, portanto, alguém mais hábil para nos apresentar Dom Quixote do que ele? Difícil pensar em outro nome. Na dificuldade, o encenador Jorge Farjalla, hoje um dos mais ousados diretores do teatro brasileiro (em sua coragem de revisitar peças míticas, como "Irma Vap", e em sua grandiloquência sempre inteligente), declarou Guerra... como seu autor. A partir da idealização de Simone Kontraluz, ele trouxe o cineasta e compositor para os palcos - o suntuoso palco do Teatro Casa Grande, no Leblon - a fim de extrair dele uma releitura cordelista do Cavaleiro da Triste Figura. Zeca Baleiro estava a seu lado nas canções. O resultado é uma espécie de "Os Deuses e os Morto" (clássico filme de 1970, indicado ao Urso de Ouro e famoso pela atuação rasga-coração de Othon Bastos) à moda Cervantes, num coquetel de Elomar com Grigoriy Kozintsev, cineasta que melhor filmou a saga quixotesca, nos anos 1950, na URSS. Em 2007, Guerra adaptou Quixote ao palco, com Edson Celulari, numa espetacular mirada sobre a arte de envelhecer e saber perdurar. Agora, com Farjalla, manchas do Tempo dão lugar a um sol tamanho GG incrustrado no palco do Casagrande, de modo a simbolizar o astro rei que queima o solo do Nordeste. Às vezes, o corpo celeste que lá está "transiciona" e vira uma lua povoada de um dragão Essa "transição", onde espinho desabrocha em flor, é a alma da trova de Guerra. Num poema de 1986, ele se explica e se expõe: "Eu sou só um momento/ Nesta estrada em cada passo, nova/ E que o amor, em que fugaz, me provo/ Delicadamente, em si, me desaprova".
Em sua adaptação perfumada de brasilidade, Guerra oferece a Farjalla um Exército de Brancaleone, dionisíaco, que une Danilo Moura, (uma inspiradíssima e nietzschiana) Dani Fontan, Jana Figarella, André Rosa, (um esplêndido) Daniel Carneiro, Du Machado, Paloma Rónai e Caio Menck. A eles se juntam o D. Quixote, depois autobatizado Dom Queixada, vivido por um lépido Lucas Leto (ultrarromântico até a alma) e uma força da natureza chamada Claudia Ohana. Os dois, assim como os demais, desdobram-se em múltiplas personas a fim de narrarem a saga de um leitor voraz em busca de uma musa imaginária, Dulcinéia. É uma história sobre alguém que se cansou da aspereza da vida real e preferiu crer que a palavra literária poderia ganhar corpo, 3D, na andança do dia a dia. É a história de uma cabeça que conseguiu ver concretude na simulação. Mais algebrista do que isso não há. Logo, Ruy segue sua aritmética lúdica ciente de que num país de tantas loucuras como o Brasil, dois mais dois dá mil. Ohana, precisa em seu trabalho de voz, brinca com as personas que criou para Guerra no cinema, fazendo uma espécie de Erêndira madura, marota e malandra. Lindo de ver.
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