RODRIGO FONSECA Desde 1938, quando Dalva de Oliveira emprestou sua aveludada garganta ao filme "Branca de Neve", gerações e gerações do nosso povo devem a ampliação de seu repertório vocabular, se não sua alfabetização, à dublagem. A partir das chamadas de Ricardo Mariano ("Versão Brasileira: Herbert Richers"), o Brasil em peso aprendeu termos que, por vezes, não faziam parte das cartilhas escolares, enriquecendo - pela melopeia - a nossa maneira de articular palavras da língua portuguesa. Desde 1996, quando "Toy Story" estreou aqui, Marco Ribeiro e Guilherme Briggs serviram de babás a crianças de todo o país, como as vozes do xerife Woody e do astronauta Buzz Lightyear. Alexandre Moreno fez a gente perceber quão bom ator Adam Sandler é e nos deu mil e uma manhas amoras adaptando os diálogos de "Como Se Fosse a Primeira Vez" pro carioquês. Grandes atrizes de Hollywood e de estúdios europeus e asiáticos notabilizaram-se em nosso imaginário sintonizadas aos gogós de Miriam Ficher, Carmen Sheila, Marta Volpiani, Ilka Pinheiro, Cecília Lemes, Súmara Louise, Angela Bonatti e Monica Rossi. Na dublagem, a educação sentimental desta pátria vestiu o traje tropicalista da brasilidade, num banho de loja de autoestima e autoafirmação. Mas, apesar de tudo isso, a arte de dublar periga ser uma das manifestações culturais mais castigadas pela ignorância e pelo preconceito nestas terras. O desrespeito é recorrente e crescente com profissionais da classe, a começar pela guerra se travou, em meio à pandemia, entre a exigência de que os artistas fossem pra "dobragem" presencialmente e a opção pela "dobragem" remota - o que protegeu muitas estrelas da covid-19. Existe ainda o cancro chamado "redublagem", a opção de certos estúdios (quase sempre sob a demandas de TVs) em substituir versões que se tornaram clássicas por novos elencos. Essa "brincadeira" fez com que a antológica dublagem de "Os Embalos de Sábado à Noite" (1977) - na qual Mario Jorge dava provas de ser um dos MAIORES ATORES que esta nação já conheceu - fosse substituída por uma releitura que não se destacou nos tímpanos da gente. E, mesmo que tivesse se destacado, sua realização representa o "apagamento" de um trabalho que primava pela mais pura excelência. O mesmo vale para a redublagem da franquia "Rambo", quando André Filho (gênio absoluto) teve seu falar tirado dos lábios de Sylvester Stallone. Redublar é o mesmo que alguém resolver mudar as tintas de um quadro de Cândido Portinari por acreditar que as pinceladas dele não se adequa aos princípios do olhar dos dias atuais. A absurda redublagem de "Karate Kid" (1984) apaga o legado de Magalhães Graça e de Cleonir dos Santos. É como se o Instituto dos Arquitetos do Brasil decidisse redesenhar Brasília por considerar obsoleto o que Oscar Niemeyer fez.
Atualmente, anda rolando uma outra prática desleal - com toda uma classe profissional e com o PÚBLICO - que é a opção por trocas de vozes de determinados "bonecos" (termo usado para se referir aos astros estrangeiros que ganham versões em português) em testes exigidos por canais de streaming ou por distribuidoras. A VERGONHOSA dublagem inicial série "Tulsa King", que colocou um ator incompatível com o vozeirão de Stallone, sem considerar a longeva adesão de Luiz Feier Motta ao eterno Rambo, foi um exemplo disso. Nesta semana, uma confusão inflamou os fãs da "técnica de dobrar" com a notícia de que Hélio Ribeiro não foi chamado para dublar Robert De Niro (seu "boneco" há três décadas) por conta de um teste, no qual Guilherme Lopes ficou foi eleito o dublador do astro em "Assassinos da Lua das Flores". Guilherme fez um trabalho esplendoroso este ano como Russell Crowe em "O Exorcista do Papa" e, costumeiramente, seu trabalho é notável. O que está em questão aqui não é seu talento, mas, sim, a desconexão de Hélio com De Niro, o que representa uma traição histórica para com os espectadores que apreciam (ou necessitam d)a dublagem. Inclua aí nesse balaio a inexplicável escalação de Marcelo Pissardini (também inegavelmente competente) para dar voz a Harrison Ford em "Indiana Jones e a Relíquia do Destino". Esqueceram-se de que, pro Brasil, Guilherme Briggs e Garcia Júnior são os titulares de Ford. Ponto. É imperdoável esse desmantelo de uma atividade que nos deu tanto. É um descaso que ofende a memória de gigantes como Newton DaMatta, Ézio Ramos, Mario Monjardim, Iara Riça, Orlando Drummond, Vera Miranda, Isaac Bardavid e muitas outras vozes que se calaram. Silêncio nos estúdios, galera, que a dublagem só merece aplausos, não merece agressões.
p.s.: Todo mundo traz para a vida adulta alguma memória dolorosa da infância, algo que costuma provocar uma angústia na alma. E se fosse possível criar narrativas ficcionais que ressignificam essas lembranças e mudassem nossa percepção do presente? Essa é a proposta da peça-show "O homem que esqueceu a própria música, uma autobiografia inventada", que estreia, nesta quinta-feira (06/07), no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto, no Humaitá. Com texto e direção de Jefferson Almeida, o espetáculo reúne o ator Davi Palmeira, idealizador do projeto, e o ator e músico Thiago Thomé em cena para investigar a relação entre memória e ficção e as possibilidades de modificar nossa autoimagem no presente. O espetáculo é fomentado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, através do FOCA 2022 (Edital de Fomento à Cultura Carioca). Com direção musical e canções originais de Renato Frazão, o espetáculo é guiado pela música e inspirado em lembranças do ator Davi Palmeira e a (não)relação dele com o seu pai. Em cena, vemos um pai e seu filho, que vivem juntos, mas não conseguem criar uma ligação de cumplicidade.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.