RODRIGO FONSECA Dois anos depois de sua passagem pelo Festival de Locarno, na Suíça, numa consagradora projeção pontuada por gargalhadas, "Technoboss", uma das mais inventivas criações do cinema português, ganhou um novo (e bem-vindo) lar na streaminguesfera: a MUBI. Aliás, a plataforma de curadoria humanizada pilotada no Brasil por Juliana Barbieri anda imparável, indo de Darren Aronofsky ("Fonte da Vida") a exemplares da Primavera Romena ("Malmkrog"). Só tem coisa boa no www.mubi.com incluindo "Notturno", de Gianfranco Rosi, que ficou virgem de tela grande por aqui, e uma mostra de Wong Kar Wai, com "Amor à Flor da Pele" (2000) no pacote. Em meio a tanta coisa boa, o longa-metragem mais recente do lisboeta João Nicolau, de 46 anos, cai no menu desse streaming como um estandarte da excelência ibérica. Concebido como um estudo dos enguiços mecânicos (e éticos) inerentes às relações de trabalho no mundo digital, em seu acolhimento de mentes analógicas, avessas ao ctrl alt del, "Technoboss" farfalha a bandeira do cinema de invenção com humor a mil. Uma das mais irreverentes atrações de Locarno 2019, esta micareta filosófica é calcada no carisma de um ator não profissional como protagonista: o jurista e aspirante a Mastroianni luso Miguel Lobo Antunes. Calcada ainda num inusitado misto de ironia e leveza, esta comédia cantada destrói atavismos morais. Se no nietzschiano "John From" (2015), Nicolau mapeava a primavera de uma vida (a mocidade), aqui ele se concentra no outono do viver, mas sem o peso do tempo. É uma mistura de "Harry and Tonto" com Jacques Tati. Irmão do escritor António Lobo Antunes, Miguel vive (sem qualquer experiência de atuação prévia) Luís Rovisco, mais antigo representante de uma firma de câmeras de segurança, monitores e sensores de cancelas. O dia a dia da SegurVale - Sistemas Integrados de Controle de Circulação é sua vida há três décadas. Só que sua reforma está para chegar. Na trama, editada por Nicolau em parceria com o cineasta italiano Alessandro Comodin, vemos uma jornada do Sr. Rovisco para se manter na euforia, mesmo com a crônica da morte de sua vida profissional já anunciada. Um neto cheio de alegria e um gato, Napoleão, serão seus companheiros num périplo por hotéis e firmas, sempre regado a músicas que desafiam o realismo, mas nem tanto. "Tenho um carinho pela velhice e pela força criativa que ela carrega, como resistência", disse João Nicolau ao P de Pop, em Locarno. "Não há vontade metafórica em representar o que se passa em Portugal, como um eco de crises. Existe sim uma percepção do Real, com todas as suas incongruências, mas a vontade aqui é outra, numa relação de atração e repúdio ao musical clássico. Luís Rovisco vai entrar na reforma. Mas eu não desejo representar sua velhice... a velhice... com comiseração. Não há, nele, uma diferença entre erro e acerto, pois ele está bem consigo mesmo. É libertador".
Primo (sabe-se lá de que grau) do músico e compositor Edu Lobo, Miguel, que vive Rovisco, jamais atuou antes, tendo atraído o olhar de Nicolau ao dançar em uma festa. Mas quem vê seu desempenho, pautado pela leveza, em cena, duvida disso. "Meu único objetivo no set era deixar o João feliz, agradá-lo... mantendo a esperança de que possa deixar os espectadores satisfeitos também", disse Miguel ao Estadão, ao fim da projeção de "Technoboss". "Pra uma pessoa que nunca fez nada no cinema antes, estrelar um filme inteiro é algo que só se faz às custas de muito trabalho. Ensaiei com Nicolau de junho a agosto do ano passado e tive umas aulas de canto".
p.s.: De 4 de maio a 1º de junho, a PUC vai oferecer um cursaço do escritor Luiz Antônio Aguiar sobre o Bruxo do Cosme Velho: "Segredos de Machado de Assis: Crônicas e Contos". As aulas serão online, via Zoom. Infos: https://cce.puc-rio.br/sitecce/website/website.dll/folder?nCurso=segredos-de-machado-de-assis%3A-cronicas-e-contos&nInst=cce
p.s. 2: Já está na rede o trailer do delirante "Veneza", de Miguel Falabella, previsto para estrear em junho. Confere aqui:
Eletrificada pela luz mais bonita da carreira de Gustavo Hadba como fotógrafo, Carmen Maura nos encanta no papel de Gringa, cafetina que trocou a paixão de sua vida por $. O preço por sua escolha vem na forma de uma cegueira e do desejo de ir atrás de seu amado. Dira Paes está em estado de graça, como a garota de programa n.1 de Gringa, assim como Carlo Castro, laureada em Gramado com o Kikito de melhor coadjuvante por seu desempenho digno de Anna Magnani.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.