A arte de apresentar uma coleção em um desfile tem a ver com a habilidade de contar uma história por meio de roupas. Ontem, no penúltimo dia do São Paulo Fashion Week, a maioria das marcas soube como explorar muito bem o storytelling. A Cotton Project, por exemplo, fez uma viagem ao universo dos beatniks, que nos anos 50 pregavam um estilo de vida antimaterialista e sonhavam em fugir dos grandes centros rumo às montanhas.
Priorizando o mise-en-scène, os estilistas Rafael Varandas e Acácio Mendes posicionaram a plateia em pé, ao redor de uma pedreira cenográfica. A coleção veio com um ar vintage, misturando terninhos de veludo, casacos xadrez, gorros e boinas a elementos esportivos da escalada. “No pós-guerra, uma época próspera, muita gente não conseguia se enquadrar e acabava vivendo à margen da sociedade”, conta Varandas.
Rei do storytelling de moda, Ronaldo Fraga apostou dessa vez numa coleção inspirada em Cândido Portinari. Em uma carta ao artista, o estilista diz como imagina Guerra e Paz, obra das mais famosas de Portinari, sendo pintada hoje – e é esse o exercício criativo que transfere para suas roupas. Os vestidos aparecem estampados com cenas em que retirantes nordestinos dão espaço a refugiados e sem-terra. Diferentemente da obra original, Fraga acredita que Guerra e Paz falaria agora da soja e não do café, assim como das florestas entregues ao agronegócio, das opressões que as minorias têm sofrido e de políticos-hienas.
Já no desfile da Apartamento 03, o estilista Luiz Cláudio explorou duas linhas opostas. A primeira com linho em uma alfaiataria chique com formas amplas e belos paletós, e também em vestidos plissados multicoloridos. A segunda leva veio artificial, com paetês gigantes translúcidas e telas com vidrilhos.
A explicação para a bifurcação criativa veio de uma constatação: as pessoas hoje estão obcecadas pela beleza perfeita, abusando do botox e se “plastificando”. Por isso, ele quis refletir sobre a beleza do natural, usando o linho que é um tecido que amassa e os plissados, numa alusão às rugas, versus a textura fake dos materiais sintéticos.
É verdade que, às vezes, essas histórias podem soar banais. Mas é difícil imaginar dezenas de looks com modelagens complementares, estampas originais e cores coordenadas, sem que haja um tema, um ponto de referência. Mirar em um universo estético, ou até intelectual, é default para estilistas que conseguem imprimir seu estilo e passar uma mensagem na passarela.
Não à toa, até por trás da moda praia chique e minimalista da Haight, de Marcella Franklin, existe uma explicação filosófica. “Desenvolvemos a cartela de cores com referências extraídas das figuras na natureza como areias, argilas e terra. E trazemos diferentes tons de bege aquecidos pelos vermelhos, representando as camadas que constroem a figura humana na natureza.”
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