Imaginar que o mais célebre dos pós-impressionistas chegou a viver na miséria é acachapante. Van Gogh é um exemplo, mas o pintor fictício Juan Salvatierra, personagem central no romance homônimo do argentino Pedro Mairal, tem igualmente sua vida como fonte de criação. Aplica-se a ambos a frase de Miguel, o herdeiro, logo no começo do livro: “Esse mito que está sendo criado em torno da figura de Salvatierra nasce em virtude do seu silêncio”. É na figura do artista mudo que Mairal constrói sua metáfora sobre como a sociedade lida com a arte. A mudez recai sob artistas também como destino, pois como compreender uma pintura ou escultura sem o subsídio da educação, sem apoio institucional? Essa realidade é exposta no decorrer do livro, em um imbróglio que vai agitar os nervos dos irmãos que cuidam do espólio do pai.
O descaso do próprio país com a obra do pintor, depois de tombá-la, é outra coincidência com o mundo real. Só no Brasil estão inúmeros exemplos a céu aberto, bronzes históricos carcomidos por azinhavre e afrescos de igrejas apagados pelo tempo. Não é preciso ir longe, um exemplo recente que jogou luz no descaso do estado com a arte é a biografia do pintor Guignard, escrita pelo mineiro Marcelo Bortoloti. Assim como Salvatierra, o pintor brasileiro não foi poupado do silêncio em vida. Salvatierra viveu em reclusão por anos em decorrência da possível sequela neurológica de uma queda de cavalo. Refugiou-se na pintura para afogar as mágoas, como Van Gogh o fez, e retratou o mundo em moldes superlativos. Mairal usa hiperbólicos rolos de lona, com metros de altura e quilômetros de extensão, para dimensionar a arte de Salvatierra que, literalmente, não caberia em nenhum museu do país. Esse jogo com a metragem da tela diz muito sobre o fazer artístico do protagonista, seus limites e os empecilhos que o poder público cria.
“Quadro é uma palavra que sugere uma moldura, uma cerca que resguarda alguma coisa, e é exatamente isso que Salvatierra queria evitar.” Se era a liberdade que o pintor buscava em vida, então sua pintura foi o mapa ou quebra-cabeças que lhe daria a salvação. Salvatierra, funcionário dos correios, num provinciano vilarejo argentino, não ficou um dia sem pintar e fez um diário visual gigantesco, o que lhe rendeu a fama de excêntrico. É pela pintura que os herdeiros vão conhecer o pai e desvendar segredos do mudinho praticamente inofensivo. Salvatierra tem um passado que o condena, e é por um rolo perdido que uma investigação começa a ser feita por toda a obra do pintor. Afinal, se pergunta o protagonista, “Quem é meu pai?”.
A busca pelo pai é um tema muito explorado na literatura, mas Mairal traz um frescor ao construir um personagem misterioso como Salvatierra, com todos aqueles rolos de pintura armazenados em um precário galpão, a especulação imobiliária do bairro dominado por gangues e, em paralelo, Miguel se esforçando para achar o ano perdido de Salvatierra, poia na trama, cada rolo corresponde a um ano da vida do pintor (provavelmente inspirado no polonês Roman Opalka, que numerava suas telas para fazer um diário visual). Avesso ao glamour das galerias e aos negócios, Salvatierra escolheu a reclusão e bateu os pés mesmo para divulgar sua obra. É curioso notar esse estereótipo do artista turrão, inventivo como Salvatierra, que lembra ligeiramente o veterano Renzo Nervi, protagonista de Minha Obra-Prima, filme do diretor Gastón Duprat.
O que Salvatierra tem de terno, Nervi tem de áspero. Ambos são teimosos e espartanos em seus modos de vida. É interessante notar como a Argentina olha seus artistas a partir das duas obras sobre pintores ficcionais: do filme de Duprat ao romance de Mairal, vê-se uma figura de grande valor artístico degradada pelo poder, malvista em jet-sets, e relegada a chistes e pechas de excentricidades, mas absolutamente caras aos envolvidos.
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