Um assassino truculento que executava presos debilitados pela tortura com tiros na cabeça e um Romeu extremado que escrevia cartas para a amante em papel timbrado do Departamento Estadual de Investigações Criminais. Detalhe: em papel estampado com um cândido cachorro de desenho animado segurando uma lupa de detetive. Essas duas imagens são insuficientes para descrever o sanguinário delegado Sérgio Paranhos Fleury, que chefiou o hediondo Esquadrão da Morte e nunca teve uma condenação sequer, morrendo supostamente por afogamento num dia plácido em Ilhabela, em maio de 1979. Há muitos outros Fleurys emergindo do livro Autópsia do Medo (Editora Globo), do jornalista Percival de Souza. Mas, e principalmente, há personagens secundários que Souza traz à luz e que poderiam - houvesse disposição - clarear um período dos mais obscuros da História do País. "Eu sabia que um dia você viria me procurar", disse a Percival de Souza, abrindo a porta do apartamento, a advogada Lenora Rodrigues de Oliveira, ex-amante do delegado e uma das fontes preciosas do livro. Como ela, há muita gente esperando que alguém bata à sua porta para contar o que sabe - e que esconde por motivos os mais diversos. Percival de Souza tem 57 anos de idade e 31 de profissão. Ganhou quatro prêmios Esso de Jornalismo e cobriu as atividades do Esquadrão da Morte para o Jornal da Tarde. Atualmente, escreve para a revista Época. Agência Estado - Como era sua relação pessoal com o delegado Fleury? Percival de Souza - Não nos suportávamos mutuamente. Ele foi o responsável pela minha condenação, sob a acusação de indispor o povo contra as autoridades. Mas ele era uma figura obrigatória, jornalisticamente. O jornalista da área policial tinha de passar por ele, não tinha jeito. Durante uma cobertura no Mato Grosso, nós passamos um mês no mesmo hotel. Essa coisa de tomar café no mesmo lugar, jantar e almoçar no mesmo lugar acabou ajudando a quebrar o gelo e romper algumas idiossincrasias. Ele era truculento no trato com a imprensa? Ele era bruto, avesso a entrevistas. Falava o estritamente necessário. Mas me surpreendeu com o convite para o casamento de sua filha. No livro, o sr. revela que, entre outras coisas, ele se apoderou de um saco cheio de dólares apreendido na prisão do mafioso Tommaso Buscetta. Ele enriqueceu com o fruto da corrupção policial? Tive a preocupação de buscar a resposta a essa questão e, no livro, divulgo o inventário dele, que consegui com a ajuda da Justiça. Não tinha grande coisa: a casa em São Paulo, o carro e um terreno em Campo Grande - o que reforça minha tese de que ele pretendia sair de São Paulo, afastar-se da polícia, provavelmente com sua nova companheira. E o saco de dólares de Buscetta? Ninguém consegue saber de fato quanto tinha naquele saco. Mas eu rastreei que fim levou e boa parte ele usou para reformar o segundo andar do Dops, onde estava seu escritório. Ele achava que não tinha de dar satisfações a ninguém. Mas qualquer um sabia que não havia recursos oficiais para aquela reforma. Uma reportagem do "Jornal do Brasil", no ano passado, mostrava a viúva de Fleury dizendo que a família nunca desautorizou a autópsia no delegado após o afogamento. Qual é sua crença pessoal quanto à morte dele? No livro, eu detalho minuciosamente o cenário da morte. Fleury viveu com entusiasmo nos dias anteriores. Estava eufórico com seu barco. Houve dúvidas do médico na hora de expedir o óbito, o que causou um tumulto na delegacia. Não defendo tese alguma, mas dou detalhes que reforçam as dúvidas. A apuração policial foi frágil e displicente. Ele era o maior mito da polícia e sua morte foi tratada como uma morte comum, talvez até um morto de terceira categoria. O genro dele, que era médico viu o corpo e convenceu a família de que ele tinha realmente se afogado. Havia todos os sinais evidentes, tinha muita espuma na boca. E a maior autoridade da polícia na época, Celso Telles, que era delegado-geral, proibiu a realização de exame necroscópico. O Chibata (médico conivente com a tortura) questionou a tese. Disse que podia ter sido um afogamento, mas que Fleury caiu na água por um motivo nebuloso. O sr. ouviu essas pessoas recentemente? O que dizem hoje? Celso Telles era um dândi na polícia, um homem de gostos requintados, que se vestia impecavelmente. Quando o reencontrei, no ano passado, ele pesava 30 quilos, não tinha nenhum dente na boca e falava com a voz arfante, com dificuldade. Tinha câncer e morreu pouco tempo depois do depoimento. Ele me contou que mandou o delegado Lúcio Vieira, então diretor do Departamento de Polícia Científica, ver o corpo do Fleury. E que Vieira garantiu-lhe que fora um mero afogamento. Então, não havendo dúvidas, ele achou que seria constrangedor mandar abrir um colega por nada. Ele guardava o inquérito do caso, que ninguém nunca viu, e me deu após a entrevista. No inquérito, há depoimentos curiosos. O promotor designado lamenta que o Fleury tenha escapado incólume de um ajuste de contas e pede que a justiça divina não o deixe passar batido. Por que exatamente o sr. escreveu um livro sobre um torturador? Foi com o intuito de evidenciar a barbárie ou tem alguma espécie de obsessão pessoal nisso? Eu acho o seguinte: ao longo dos últimos anos, solidificou-se a figura do jornalista-escritor. Esse personagem tem prestado serviços grandes à História do Brasil. Eu cito os livros do Flávio Tavares, Fernando Morais, Eduardo Bueno, o Notícias do Planalto (de Mário Sérgio Conti). Nesse período, tenho a impressão que a literatura dominante tenha sido um pouco turvada pela falta de distanciamento. Há um grande envolvimento emocional nesses relatos. Eu entendo que havia um vácuo histórico a ser conhecido. Os brasileiros ainda vivem da expectativa de que um dia venham a ser acessíveis os arquivos da repressão. Há um certo temor até para tratar de certos personagens. Eu achei que teria condições de abordar isso com distanciamento, desde que me aplicasse muito. De certa forma, o sr. parece estar se especializando nos vilões da História. Primeiro, fez um livro sobre o Cabo Anselmo. Agora, sobre o delegado Fleury. De certa forma, sim, mas há muitos personagens no livro. Tirando os óbvios, a maior parte dos personagens são anônimos, mas figuras de grande importância dentro do aparato de repressão. Recompor as cenas por meio dessas pessoas é um trabalho hercúleo. Por exemplo: a cena da tortura dos padres dominicanos. O delegado que os interrogava (Raul Ferreira) fazia isso vestido com uma batina. E brincava com jogos de palavras. "Agora vocês vão confessar", dizia. Falava frases em latim, muito mal. Ele ainda vive? O sr. falou com ele? Ele não quis falar comigo, mas eu reconstituí com outras testemunhas daquela cena. Eu fui até ele e disse: "A História está batendo na sua porta." Queria que ele tivesse a noção exata da perspectiva histórica dessa reconstituição. Ele disse não. Mesmo entre a esquerda, a tortura é um tabu. Poucos relatos narram isso com fidelidade. O Flávio Tavares, ex-preso político, foi um dos primeiros a fazer isso, a explicitar o relato da tortura. Eu narro diversos tipos de torturas, como o interrogatório com punhal, no qual a pessoa ia sendo sangrada enquanto era inquirida. É triste, desagradável, chocante contar isso, inclusive para mim. Mas é preciso. Conto que os policiais militares chamavam o Dops de "a casa da vovó", e não consegui descobrir por que. Usavam linguagem médica nas comunicações por rádio. O que sei é que a tortura chegou a um ponto de crueldade que nunca foi descrito. Como no caso Herzog? O politicamente correto é restritivo. Muita gente sofreu e morreu lá, além do Herzog e do Fiel (Manoel Fiel Filho). Antes do Herzog, morreu sob tortura, lá, o tenente PM Ferreira. Mesmo com a troca do Comando Militar, a tortura continuou. O Doi-Codi era um poder paralelo no País, um poder sem limites. O Fred Perdigão, homem-forte do Doi-Codi, foi citado pelo Newton Cruz como um dos homens-chave do caso Riocentro. É uma amarra histórica importante. O delegado Benedito Nunes era cunhado do Gama e Silva, ministro da Justiça do AI-5 e primo do presidente Costa e Silva. Há uma conexão familiar no aparato repressivo. Quando foi morto, o delegado Otávio Gonçalves Magalhães Moreira Júnior, do Doi-Codi, no Rio de Janeiro, estava hospedado no apartamento do Gama e Silva. O Comando de Caça aos Comunistas era lá de dentro. O sr. diz que apresenta outros personagens importantes do aparato repressivo. Quem, por exemplo? Em 1969, quando mataram Carlos Marighella, quem o sucedeu foi Joaquim Câmara Ferreira, apelidado de ´Toledo´. Pois bem: Toledo foi dedurado por um certo Tavares, preso em Belém do Pará, e que tinha recebido proposta de sair limpo caso entregasse o aparelho. Entregou e foi solto. Isso mostra Fleury cumprindo seus tratos, o que era uma de suas marcas. Qual é sua explicação para tanta truculência? Foi um período de guerra revolucionária, com ódio recíproco. Guerra sem regras e convenções. Os protagonistas eram inimigos com identidade, com rosto, e aquilo adquiriu contornos pessoais. Vou citar só um exemplo: quando o delegado do Doi-Codi foi morto no Rio, o irmão dele veio buscar suas coisas. Devolveram a farda, os pertences pessoais, mas não a arma. Disseram ao irmão que os implicados na morte iriam todos morrer com aquela mesma arma. Meu objetivo é retratar com alguma equidistância esse período de guerra. Autópsia do Medo. De Percival de Souza. Ed. Globo, 650 páginas. R$ 44,00.
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