Desde que o filósofo grego Platão elaborou o Mito da Caverna – no qual prisioneiros que veem apenas sombras projetadas nas paredes de um calabouço acreditam ser aquilo, e não o mundo externo, a verdadeira existência —, a humanidade se questiona se há outras realidades às quais se pode ter acesso. A questão é ainda mais aguda em uma época na qual aparelhos de realidade virtual se desenvolvem a passos largos e o sujeito mais rico do planeta, o empresário sul-africano Elon Musk, acredita piamente que vivemos em uma simulação. Nesse mundo, um escritor como o americano-canadense William Gibson se torna cada vez mais necessário, assim como Periféricos, seu livro de 2014 que a editora Aleph publica agora pela primeira vez no Brasil.
O romance acompanha Flynne, irmã de um veterano de guerra norte-americano que sofre com os traumas provocados pelo serviço militar e trabalha fazendo bicos como segurança em jogos de videogame online. Ela o substitui em seu emprego por uma semana e, durante esse turno, acaba flagrando um assassinato que parece mais real do que um simples jogo. O que ela não sabe é que esse crime ocorreria de verdade – no futuro – e que tê-lo testemunhado também a coloca em perigo. Periféricos se passa em dois tempos: um futuro próximo e decadente, de dificuldades financeiras e escassez; e um futuro distante e alienado, de prazeres fúteis e abundância. Esses períodos são separados por 70 anos e um evento catastrófico conhecido como Sorte Grande – uma combinação de mudanças climáticas, inundações, epidemias e falta de alimentos –, que dizimou 80% da espécie humana. No entanto, um tipo de servidor de internet misterioso permite a comunicação direta com outros tempos e coloca essas duas épocas em contato. Esse “passado” em que vive Flynne e seu irmão, com o qual as excêntricas personagens do “futuro” se comunicam, chamado no livro de “toco”, foi criado no instante em que se deu o primeiro contato entre eles. Os eventos nos tocos, influenciados pelos contatos com o futuro, não transcorrem como o passado conhecido, se distanciando daquele futuro. Ou seja, é impossível prever os acontecimentos em cada linha temporal e ambas são independentes entre si. “O ato de conectar produz uma bifurcação na causalidade, a nova ramificação é única em termos causais”, explica uma personagem a certa altura. É por causa dessa estrutura cronológica que a vida da protagonista Flynne não tem muito valor: “Planejar o seu assassinato não constituiria de forma alguma um crime aqui, uma vez que você, de acordo com o melhor parecer legal da atualidade, não é considerada real”, informa com frieza uma policial. Embora o romance trate do manjado dilema temporal, não há paradoxos ou viagens cronológicas propriamente ditas. Apenas a informação transita entre os períodos. Além de videochamadas, as personagens podem pilotar drones situados em outras épocas e Flynne é convidada a assumir o controle de um corpo artificial quase idêntico a um ser humano – um periférico – para poder atuar nesse futuro. A metáfora central de Periféricos é bem clara: o passado define o presente por meio da causalidade, mas o presente também altera o passado por meio da informação – no romance, de modo bem concreto, pelas ações das personagens; na vida real, por meio da memória, que está sempre a remodelar o pretérito e a olhar para ele sob outro significado à luz de novos fatos. Passado e presente estão sempre fazendo um intercâmbio mútuo que os redefine constantemente – e determina o que é real ou não. Há ainda outra questão, trabalhada exaustivamente ao longo da obra gibsoniana, que permeia o romance: a realidade enquanto simulacro. Flynne primeiro assume o posto do irmão contra a sua vontade em um emprego aparentemente sem sentido; depois, se vê obrigada a assumir o corpo periférico para poder se livrar dos mafiosos que a caçam em busca de queima de arquivo. Na modernidade retratada por Gibson, o ser humano é sempre um ser que aceita se alienar de si mesmo – seja na figura de Flynne assumindo papéis que não são o dela, seja na figura dos hackers deixando para trás o próprio corpo e navegando no ciberespaço imaginado por Gibson nos seus romances iniciais, dos anos 1980.
Essa ideia de alienação própria já havia sido explorada em The Belonging Kind, conto escrito em parceria por Gibson e John Shirley em 1981, no qual um tímido professor (ironicamente de linguística) é incapaz de se comunicar com as pessoas, sentindo-se sempre inadequado ou um estranho no ninho. Ele descobre que há um submundo habitado por pessoas que se transmutam de acordo com as situações em que estão para sempre estarem em conformidade com o ambiente, e aos poucos se torna um desses “seres pertencentes”. Dessa maneira, ele aliena sua própria humanidade para nunca mais sentir sua inadequação ao mundo moderno. Periféricos expande essa ideia dando corpo – literalmente – às personagens, para que elas possam se adequar ao contexto em que precisam na pele de um androide biológico, um periférico. Para Gibson, em um tempo no qual as interações interpessoais e as redes sociais são tão onipresentes e opressivas, é impossível se encaixar no mundo sem abrir mão da autenticidade e, em última instância, da própria humanidade. Em The Gernsback Continuum, conto de 1981, Gibson imagina um fotógrafo incumbido da tarefa de registrar edifícios dos anos 1930 construídos em arquitetura futurista art déco. Esses prédios, relata um personagem, estão imbuídos de uma visão otimista de futuro que nunca se concretizou, o que os torna assombrados por “fantasmas semióticos”, ou seja, ícones, símbolos e significados que assombram o inconsciente coletivo. O protagonista passa a ver os edifícios que fotografa cada vez mais vívidos e, aos poucos, é transportado para o futuro imaginado por autores como Hugo Gernsback, cheio de carros voadores, prosperidade e máquinas que fazem de tudo. Nesse conto, Gibson pavimenta a noção de que, na sociedade contemporânea, o virtual é tão real quanto o real, ideia fundamental para toda a sua obra posterior, de Neuromancer a Periféricos. Ao lado de John Shirley e Bruce Sterling, Gibson é um dos profetas do cyberpunk, subgênero da ficção científica formatado nos anos 1980 e que é frequentemente resumido pelo bordão “alta tecnologia, baixo padrão de vida”. O estilo surgiu em oposição ao ecossistema conformista da ficção mais comercial da época, fortemente influenciada pelo sucesso audiovisual de Star Wars e Star Trek e tida como escapista por ser pouco atenta aos problemas do mundo real. Essa literatura majoritariamente anglófona, otimista com a vitória da democracia liberal contra o nazifascismo, imaginava um futuro limpo, hermético, com heróis e vilões muito claramente definidos, com a expansão humana levando os valores ocidentais para os confins da Via Láctea em naves lustrosas. Ou, como Gibson escreveu em uma introdução de 2003 a sua coletânea de contos Burning Chrome, publicada originalmente em 1986: “Homens confiantes, que sabiam exatamente de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. E eles estavam redondamente enganados em todas as três áreas”. Já nos anos 1980, porém, ele previa que a ascensão de uma cultura digital baseada nas corporações supranacionais, não regulamentadas por governos, colocaria em xeque a tão celebrada democracia liberal. Seu conto Burning Chrome (1982) introduziu o conceito de ciberespaço e Neuromancer, sua obra-prima que se passa no mesmo universo ficcional, expandiu essa ideia. A obra narra a jornada do ex-cowboy digital Case, que teve seu sistema nervoso danificado para impedi-lo de acessar o ciberespaço como punição após tentar roubar seu patrão e ganha uma nova chance na matrix em troca de realizar um serviço sujo. O livro lida com temas como inteligência artificial, interface homem-máquina, modificações corporais, pós-humanismo, entre outras questões cada vez mais prementes no mundo contemporâneo – isso antes mesmo do surgimento da internet como a conhecemos, com os protocolos de Tim Berners-Lee. Gibson anteviu a crescente influência da cultura oriental no Ocidente, mas em seus romances primevos ainda era o Japão, e não a China, que se tornava hegemônico – algo que ficou marcado na estética cyberpunk. Periféricos corrige essa imprecisão futurista, fazendo o servidor que estabelece contato entre passado e futuro ser vagamente descrito como chinês. Com pouquíssima explicação a respeito do contexto e descrições desconcertantemente confusas, as primeiras cem páginas de Periféricos podem ser um tanto penosas para leitores pouco versados na prosa de Gibson, que em alguns pontos se aproxima à verborragia de Thomas Pynchon. Uma profusão de siglas, abreviações crípticas e personagens com apelidos e nomes pouco usuais pode, a princípio, afastar os leigos, mas essas mesmas dificuldades da linguagem do autor logo se convertem em elementos que proporcionam um vislumbre de um cenário futurista que provoca desconforto e náusea – como seria de fato o impacto de ser introduzido sem aviso em um futuro absurdo.Periféricos pode não ser uma leitura fácil, mas não poderia ser mais coerente com o conjunto da obra gibsoniana, que, em um período de certezas ingênuas, reintroduziu a ideia de um futuro sombrio e incerto.
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