No princípio, era o homem. O homem, com todas as suas contradições, agruras e dilemas éticos e morais. E as línguas sagradas, destinadas a narrar a caminhada do ser sobre seu chão, podem transmutar-se na poesia mundana que traduz uma espécie de exílio em si mesmo em meio às infinitas hostilidades de uma terra santa. Ao menos é o que nos transparece o verbo na voz de Yehuda Amichai (1924-2000), poeta nacional de Israel, que chega ao mercado editorial brasileiro em tradução do professor e também poeta Moacir Amâncio, na antologia Terra e Paz. O jogo léxico do título é propício, já que Amichai costura seus poemas com a eterna dialética que há na guerra como busca pela paz e pela estabilidade num espaço tão turbulento quanto sua pátria.
Amichai nasceu Ludwig Pfeuffer, em Würzburg, Alemanha, no berço de uma família judia ortodoxa que, em 1935, por conta da perseguição nazista, transferiu-se para a Palestina. Já maior de idade, trocou seu nome e adotou um sobrenome hebraico que, segundo Amâncio, serviria para apagar o passado de perseguição e medo. No entanto, não se esquivou de seus algozes e lutou na Segunda Guerra pelo exército inglês. Por essa época, teve contato com uma antologia de poesia inglesa e foi tocado pelo desejo de fazer do verso seu ofício. Entre a poesia e os campos de batalha, Amichai ainda lutou na Guerra da Independência de Israel, em 1948, na Guerra do Sinai, em 1956 e na Guerra do Yom Kipur, em 1973.
No âmbito da poesia, emergiu de uma vanguarda literária que contava, ainda, com o consagrado Nathan Zach e assimilou a linguagem modernista, fazendo da língua hebraica um instrumento de asserções coloquiais e reflexões para além do sagrado, quer dizer, Amichai valeu-se do vernáculo bíblico para versar sobre o lugar do indivíduo que peregrina em meio ao caos que reina sob as barbas de um bom Deus. Os olhos de meu Deus vagam por toda a terra / e meus olhos procuram sempre ao lado de casa. // Deus se ocupa dos olhos e das frutas, / eu com o negócio da preocupação., diz o poeta em Olhos.
Em seu poema O Homem Não Tem Tempo, desafia o Eclesiastes e pondera a respeito das contradições que nos movem: O homem precisa odiar / e amar ao mesmo tempo, / com os mesmos olhos chorar / e com os mesmos olhos rir, / com a mesma mão atirar pedras, / e com a mesma mão recolhê-las, / fazer amor na guerra e guerra no amor. A simultaneidade que orienta a existência para além do que postulou o filho de Davi, rei de Jerusalém, em seus escritos sagrados, denuncia um tempo em que já não se pode mais esperar do verbo divino o alento para aqueles que fazem o papel de segregados e segregadores a um só turno. Quem são os bons e quem são os maus? Para que lado pende a lâmina da justiça? Amichai tampouco se habilita a cravar um veredito. Ao invés disso, comtempla esse complexo jogo de aspirações que parecem, cada vez mais, um fim em si mesmo. Assim, diz o poema Jerusalém: No céu da Cidade Velha / há uma pipa. / No fim da linha – / um menino, / que eu não vejo / por causa da muralha. // Hasteamos muitas bandeiras, / eles hasteiam muitas bandeiras. / Para pensarmos que eles são felizes. / Para pensarem que nós somos felizes. A repetição logopaica coloca em rota de colisão duas culturas apartadas pelos descaminhos históricos, mas que estão intimamente conectadas em seus anseios e vivências do universo comezinho.
O entrecruzamento entre sagrado e carnal também se faz em Jacó e o Anjo. Para além da sublime visão imortalizada em telas de Leloir, Delacroix ou Rambrandt, está o pitoresco de uma cena sugestiva em que o corpo titubeia em reconhecer a carne que lhe toca: Antes do amanhecer ela suspirou e o prendeu / daquele jeito, e o venceu. / Ele a prendeu daquele jeito, e a venceu, / ambos sabiam que o prender / traz a morte. / E evitaram pronunciar um o nome do outro.
Esta sintaxe de Amichai, que se assemelha à construção de versículos bíblicos é, aqui, uma maneira de reescrever o legado espiritual da humanidade – que em algum momento fragmentou-se em ideias e atitudes belicistas – como se houvesse uma maneira de reinterpretar a devoção sob o ponto de vista de uma modernidade que matou Deus na filosofia e nas vivências objetivas e concretas, fazendo dele apenas uma ideia vaga, um subterfúgio para a barbárie.
Não apenas de contemplação e reflexão se faz a poética de Yehuda Amichai. Por vezes, sentimos o peso de uma consternação que o lança a criar peças tão surrealistas quanto polêmicas, se vistas pelo viés da ortodoxia professada por seus genitores. Em “Eu quero bagunçar a bíblia”, o poeta lança-se num jorro aberrante que oscila entre o acinte e o humor refinado: Abel matou Caim, Moisés entrou, / na Terra Prometida e os israelitas ficaram no deserto. / Eu viajo na carruagem de Ezequiel / E Ezequiel dança como Miriam a profetiza / no Vale dos Ossos Secos. / Sodoma e Gomorra se desenvolvem / e a mulher de Ló é uma coluna de açúcar e mel / David Rei de Israel está forte e rijo. / Eu quero tanto / bagunçar a Bíblia.
Dessa anarquia permitida somente aos poetas e aos lunáticos (o que no mais das vezes podem ser um só), Yehuda Amichai extraiu em suas mais de vinte obras o muco genuíno da experiência humana no século 20, que mais parece um mosaico alquebrado de erros, acertos e, acima de tudo, de uma perseverança atenta para a guerra, a terra e a paz. Não à toa, como observa Moacir Amâncio, “Amichai” pode ser traduzido por “Meu povo vive”.
*Donny Correia, poeta e crítico, é doutor em Estética e História da Arte pela USP e autor de Cinefilia crônica – comentários sobre o filme de invenção
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.