Em Nuvens de Algodão (Editora Âyiné, tradução de Pedro Fonseca), o cineasta iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016) lança mão de uma tradicional forma poética japonesa, os haikus, para nos legar as mais belas justaposições imagéticas, como se o eu-lírico, ao capturar quadros panteístas da natureza, estivesse com a câmera do diretor em mãos. É assim que, como uma criança que corre por uma campina eivada pelo orvalho, o eu-lírico vai caçando as imagens como borboletas fugidias: “Aproximo meu ouvido/ do sussurro do vento/ do estrondo do trovão/ da melodia das ondas”. A sinestesia em profusão se vê aguçada pela chuva, cuja queda malemolente faz exalar “o aroma das nozes/ a fragrância do jasmim”.
Os versos dos haikus podem trazer vertigem ao leitor, que, em meio à transição célere das imagens, quiser descansar os sentidos fatigados pelo nomadismo do olhar. Ainda com a curiosidade da criança, o eu-lírico “mergulho/ meu rosto na água da fonte/ de olhos abertos”. Ao demarcar a mudança para a última estrofe com um hiato em branco, o eu-lírico, com o espectro do cineasta sempre a lhe rondar, corta a imagem, abruptamente, para um verso-desenlace que faz a criança ficar deslumbrada com a descoberta envolta pelas águas: “Mergulho/ meu rosto na água da fonte/ de olhos abertos/ dez pedrinhas”. Quando a voz intrépida se deita “sobre a terra dura”, o céu se descortina com seu zoológico etéreo de elefantes e girafas, até que a avó do poeta, com o indicador direito vergado pelo reumatismo, aponta para o céu e sussurra para a meninice do eu-lírico: “nuvens de algodão”, nuvens de algodão doce no céu da boca.
Até aqui, os haikus de Kiarostami perfazem o itinerário de um belo aforismo de Nietzsche (1844-1900): “Maturidade do adulto: recuperar a seriedade da criança ao brincar”. Súbito, no entanto, a brincadeira a sério da poesia assume a densidade das dez pedrinhas de chumbo que despencam, sem saber por quê, rumo ao fundo escuro do lago: “No silêncio da noite/ não me deixa dormir/ a nênia dos cupins”.
Para a curiosidade aventureira das crianças, descobrir se o pó branco sobre o tampo da mesa é açúcar ou sal implica, simplesmente, levá-lo à boca às escondidas da avó que agora bate o bolo – ou seria a torta? Mas não é sem dor, no entanto, que o eu-lírico descobre que “a mosca”, frágil, “foi morta/ culpada de haver provado o açúcar”. A criança acaba de descobrir que os mais frágeis logo se veem supliciados pela ousadia do desejo.
O céu da infância era um zoológico lúdico de nuvens. Com a consciência da vida que dói, “o céu fragmenta-se/ num espelho quebrado”. É assim que, ao olhar para “uma mulher de cabelos brancos” – a avó daquele que já não é mais um menino? –, o eu-lírico nota que a senhora “observa as flores da cerejeira:/ Haveria chegado a primavera da minha velhice?”.
Antes, as flores despontavam sob o signo inequívoco da aventura altiva. Agora, “uma pequena flor anônima”, já sem a fragrância do jasmim e sem a esperança do orvalho, “brota sozinha/ na fissura de uma montanha imponente”. É como se a poesia calejada de Kiarostami nos indagasse: de que adianta o fruto ser sumarento, se “a árvore de marmelo” floresce “numa casa abandonada”?
E agora: que fazer? “Hesitante/ estou numa encruzilhada,/ o único caminho que conheço/ é o caminho de volta”. Se a lagarta não se visse coagida a abandonar o útero da crisálida, a lenda de Peter Pan seria uma saída para a borboleta que tem medo de envelhecer – e morrer. Mas a criança que um dia Kiarostami foi já sabe que não é possível estancar os grãos de areia do tempo.
Chega o momento, então, de interpelar “uma velha monja”, que “toma o café da manhã sozinha/ barulho de chaleira fervendo”: “se estou contigo/ sofro/ se estou comigo/ temo// por onde vai a ausência do ser?”. Como é dolorido o hiato em branco que aparta os quatro primeiros versos da pergunta final desembainhada como uma faca-só-lâmina! “Por onde vai a ausência do ser?” – ou, por outra, por onde vai o ser como ausência?
A monja continua a tomar o café da manhã sozinha, como se o barulho da chaleira fervendo e a inquietude das perguntas últimas do eu-lírico fossem tão imperceptíveis como o pouso letal da mosca sobre o açúcar. *FLÁVIO RICARDO VASSOLER É DOUTOR EM LETRAS PELA FFLCH-USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY. AUTOR DE ‘DIÁRIO DE UM ESCRITOR NA RÚSSIA’ (HEDRA)
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