Em um momento em que a internet abre janelas para tantos lugares do mundo, com mais qualidade de vida, onde os voos baratos nos levam às cidades mais agradáveis, seguras e justas, a carranca da São Paulo nervosa, engarrafada e poluída cola cada vez menos.
Na nossa cidade cromofóbica, a regra até ontem era se isolar, com o enclausuramento só aumentando a tensão e o medo.
A geração Y, com amplo acesso a informação e movida por propósitos pessoais ligados à melhora do mundo - ou melhor dizendo, à salvação do homem do que ele mesmo criou - não aceita viver de braços cruzados em uma cidade como São Paulo. Citando o arquiteto e professor da USP Guilherme Wisnik, “se no período do industrialismo do pós-guerra, os espaços públicos foram sacrificados pelas rodovias, agora é o momento contrário, de essas estruturas rodoviárias serem sacrificadas e retomadas em nome do uso público”. O espaço público é onde novas concepções e configurações de vida urbana podem ser pensadas e construídas, onde a cidade pode se reinventar.
Estamos vivendo o surgimento de urgência em relação à cidade. Uma vez que é emergente, dentro de parte da sociedade civil, a busca por ser agente gerador do que é o urbano, segue-se a busca de quais são os processos urbanos que regem a cidade. Quem constrói nossas cidades, para que e para quem?
Provocadas por esses e outros questionamentos, despontam iniciativas que propõem transformar a dinâmica urbana pela ampliação do vocabulário do que pode ser essa cidade, alimentando o imaginário da cidade que queremos. Jovens lideram uma série de movimentos que têm como objetivo a participação da sociedade civil na produção da cidade. A ocupação de espaços públicos emblemáticos da cidade tem mobilizado milhares de cidadãos, em movimentos que propõem novas formas de usar, ressignificando esses lugares.
Com mais vida nas ruas - mais gente e menos carros - a atmosfera de uma cidade melhora. Quando se faz referência a uma cidade, muitas vezes nossas lembranças nos levam ao “lado de fora”, aos seus espaços públicos. É no caminhar do pedestre que a cidade dá o seu recado, gravando na memória as belas ruas de Paris, as mesinhas nas calçadas dos cafés de Buenos Aires, as fachadas dos arranha-céus que emolduram a paisagem de Chicago.
Um grupo de amigos pula corda e um bebê brinca enquanto amigas adolescentes tomam sol de biquíni. Seria uma descrição normal para uma tarde de domingo no Parque Ibirapuera, mas aconteceu no asfalto da Avenida Paulista no último dia 23. Essa foi a segunda vez que a Paulista esteve aberta para as pessoas, e já há várias movimentações pedindo mais. Um exemplo é o manifesto contra a judicialização de políticas públicas pelo Ministério Público Estadual (MPE) - que abriu inquérito sobre a abertura da Avenida Paulista para lazer aos domingos - assinado por diversas organizações da sociedade civil.
São Paulo não está sozinha nessa ideia de ativar seus espaços públicos, é um movimento global das metrópoles. No dia 27 de setembro, Paris abrirá suas principais avenidas para os pedestres durante um dia inteiro, em ação inédita pela mobilidade sustentável.
Certamente essa primavera paulistana envolve um pouco da intensa energia comunitária que floresceu nos “anos de chumbo”. Os movimentos contemporâneos buscam uma religação afetiva com os espaços degradados ou abandonados da cidade, com o que foi expulso ou esquecido. O que hoje se apresenta de forma corriqueira na cidade de São Paulo - a mobilização de milhares de pessoas pela reivindicação pelo Parque Augusta ou em torno da polêmica do destino do Minhocão - acontece no mesmo cenário em que, há menos de 50 anos, foi proibido que os cidadãos se expressassem livremente. Era inimaginável a atuação firme de movimentos que questionassem os rumos do desenvolvimento urbano de São Paulo. Somos destreinados em pensar a cidade de maneira ampla, mas estamos aprendendo rápido.
Uma dura realidade é que se no Centro ainda ocorrem cenas de repressão dignas dos anos militares, elas são ainda mais frequentes nas bordas da cidade. Com tantos grupos mobilizados quanto no Centro, a periferia resiste em achar no seu cotidiano a democracia que pretendemos. A atividade de muitos movimentos pró-cidadania ainda é tachada como criminosa.
Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas é inegável que há uma onda otimista em relação a São Paulo. Nossos corações se enchem de esperança quando ouvimos que o rio Tâmisa, em Londres, era biologicamente morto e reviveu em menos de 50 anos. Ou que tal cidade asiática substituiu suas marginais entupidas de carros por um lindo parque linear.
Crescemos achando que, em São Paulo, lazer era ir ao shopping e que para se deslocar tinha que usar o carro. Hoje dá pra pensar em outros destinos para a capital paulista. O que precisamos fazer para que essa ânsia por uma cidade melhor não seja apenas uma onda passageira, mas, sim, uma real mudança de paradigma? Certamente mais necessária que essa resposta é nos mantermos fazendo perguntas, é buscarmos a cidade que queremos na selva de pedra nossa de todo dia. O futuro de São Paulo estamos todos construindo, dia após dia.
LAURA SOBRAL É URBANISTA E MEMBRO DO INSTITUTO A CIDADE PRECISA DE VOCÊ
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