Zélia Amador de Deus é plural. Ela é artista, educadora e militante. Ela é paraense, negra, brasileira. Ela é pioneira. Premiada com o Prêmio de Direitos Humanos da BrazilFoundation, em Nova York, no mês de outubro, a professora é uma das principais referências da luta antirracista brasileira. “Há algum tempo que luto para fazer com que essa sociedade fique melhor para todas as pessoas”, conta ela ao Estadão, ressaltando que já nasceu com “vontade de consertar o mundo”.
Zélia nasceu há 70 anos na Ilha de Marajó, no norte do Pará, e se tornou a primeira reitora negra de uma universidade brasileira, com uma carreira construída na Universidade Federal do Pará (UFPA).
Ela se tornou professora universitária em 1978 e, desde então, trabalha para tornar a academia um espaço mais diverso e inclusivo. Além de ser fundadora do Centro de Estudos e do Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) e o Grupo de Estudos Afro-Amazônico (GEAM/UFPA), ela atua como professora do Instituto de Ciências da Arte e é assessora de Diversidade e Inclusão da UFPA.
Conhecimento e sustento
A professora conta que nunca pensou em deixar a academia porque era o meio de sustento de sua família. A permanência em um ambiente que rejeitou pessoas como ela por anos se tornou um combustível para exercer a mudança do mundo acadêmico no Brasil. “Uma universidade diversa fica mais rica, mais humana, infinitamente melhor do que quando só cabia dentro dela aquilo que eu chamo de o ‘mesmo’. Era só o ‘mesmo’ que frequentava as universidades. Quando você começa a discutir cotas, esse ‘mesmo’ se acha prejudicado”, explica.
A maior inspiração para a trajetória de Zélia é a sua avó. Filha de uma mãe solo adolescente, a professora foi criada pelos avós, que resolveram deixar a ilha e se mudar para Belém para dar uma vida melhor à neta.
Em seu livro Caminhos Trilhados na Luta Antirracista, publicado em 2020 pelo Grupo Autêntica, ela fala sobre a influência da avó. “Ninguém é melhor que tu”, dizia dona Francisca Amador de Deus. Ao Estadão, Zélia garante que até hoje os ensinamentos da avó a guiam em seu trabalho. “Isso me marcou sempre, e sempre foi a minha fortaleza. Ninguém é melhor do que eu, nem eu sou melhor do que ninguém. Eu já começava relações nesse pé.”
Em todo o seu trabalho, Zélia Amador de Deus fala da importância e dificuldade de ter que reafirmar o sentido de sua luta. “O senso comum é de que aqui é uma espécie de paraíso racial, uma democracia racial, e que o racismo não faz parte do nosso meio”, afirma. Por isso, para ela, sempre foi importante o processo de se unir em coletivos com aqueles que tivessem o mesmo objetivo. Por isso, também, Zélia é plural. Ao falar de conquistas, de trajetórias e de militância, ela fala na primeira pessoa do plural. Com estudos e uma vida em diáspora, entende a importância desta união. “Você nunca faz nada sozinho. Sem parcerias, não consegue construir absolutamente nada.”
Por isso, perguntada sobre o futuro, ela não faz previsões, apenas garante que a luta continua. “O que a gente está fazendo é reunir forças para reaver o nosso projeto democrático, que foi interrompido. O que a gente tem que afirmar sempre é que, enquanto houver racismo, não haverá democracia plena.”
Amazônida paraense, ela também luta contra o preconceito que sente contra a região Norte do Brasil. Segundo a professora, as regiões mais ao sul do País não veem a Amazônia como uma região com produção de conhecimento. “Você tem que se afirmar como uma pessoa negra, o que já não é fácil em uma sociedade racista. Dentro do País, você também tem que afirmar que a Amazônia tem homens e mulheres produzindo conhecimento, produzindo formas de viver, e a gente tem que afirmar e defender isso.”
Sempre conectada com os seus companheiros de luta, Zélia garante que a sua força vem das teias construídas com as histórias, os estudos e a militância. Por isso, mesmo que seja premiada e publicada em diversos espaços, ela não esquece de quem a ajudou a chegar neste lugar. “Eu sempre fui um coletivo. O trabalho aqui na universidade é feito em parceria com outros companheiros, com outras amigas, para que cheguem aqui grupos que estavam fora.”
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