Primeiro livro de Robert Musil antecipou sombras do século 21

Denunciando a tortura e o bullying, 'O Jovem Törless' ganha nova edição no Brasil

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Por José Castello

Existem ficções que antecipam o futuro. Entre os casos mais espantosos, está O Jovem Törless, romance de estreia do austríaco Robert Musil (1880-1942), publicado no ano de 1906 e agora relançado pela Nova Fronteira, com a tradução clássica de Lya Luft. O romance surgiu quase 30 anos antes da publicação do mais célebre livro de Musil, O Homem sem Qualidades, espantoso retrato do nascimento do século 20. Contemporâneo de Sigmund Freud, com quem compartilha muitas ideias, Musil nos oferece Törless como uma cápsula mágica, destinada a atravessar o tempo e antecipar não só nossos sonhos, mas sobretudo nossos pesadelos.

Adaptação cinematográfica de 'O Jovem Törless', dirigida porVolker Schlöndorff Foto: Silver Screen

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O grande tema do livro talvez seja a nefasta aliança entre a paixão e o ódio, que, com o avançar do século passado, se materializou nos fanatismos. Freud já nos mostrara isso: não basta estar apaixonado para não odiar. O amor inclui também a violência. Essa é a tragédia do jovem Törless que, levado pela família para um distante internato religioso, em vez de nele encontrar o paraíso vislumbrado pelos pais, se depara com o inferno.

Acompanhado, quase sempre, por três amigos – o impetuoso e violento Beineberg, seu seguidor Reiting com vocação para tirano e o frágil e infeliz Basini –, o rapaz descobre, aos poucos, que as ideias já não servem para entender as emoções humanas. Primeiro, atordoados pelo nascer da sexualidade, os rapazes se envolvem com Bozena, uma camareira que se entregou à prostituição. Uma mulher que deixa Törless “nu, despojado de tudo” e diante de quem o tédio se transforma em convulsão. Descobre, assim, que as coisas, quase sempre, carregam em si seu oposto, que o paradoxo reina e, diante dele, o pensamento naufraga.

Atordoados pela realidade, os amigos descobrem o que parece ser um refúgio: um velho depósito, espremido depois de uma passagem estreita. Mas é nesse buraco que, acreditando que fazem o contrário, eles cavam seu inferno. Ali, naquele esconderijo secreto, Törless descobre que não pode mais deter o andamento da vida. Depois de ser pego em flagrante em um furto, e cedendo à chantagem dos colegas, Basini é transformado por Beineberg e Reiting em escravo. Torna-se não só um vassalo intelectual, mas sexual. A sensualidade desabrocha mesclada ao horror. Törless se vê, aos poucos, envolvido em uma teia que “era concreta, real, viva, e dentro dela debatia-se uma cabeça... com a garganta estrangulada”. A cabeça de Basini.

Antecipa Musil a mistura repulsiva entre a atração amorosa e o ódio que, infelizmente, caracteriza nossos dias. Hoje – quando amar se tornou quase sinônimo de odiar –, ler Törless nos coloca diante das raízes do incômodo presente, que estão não apenas fincadas na história, mas no mundo interior de cada um. Aos poucos, o rapaz se defronta, ainda, com a insuficiência das palavras, que o leva a uma radical solidão. “O céu estava mudo”, descreve. Sentia-se “completamente só debaixo de uma abóbada hirta e calada”. O paraíso lhe pesa.

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Cada vez com mais força, os limites da realidade lhe escapam – sentimento atroz que se materializa nos “números imaginários” das aulas de matemática, nos quais as coisas são, mas também não são. Aos poucos, Törless se envolve sensualmente com Basini, mas esse sentimento, ao mesmo tempo em que o eleva, lhe provoca repulsa. A atração e a crueldade – repetindo outra imagem atroz de nossos dias – cada vez mais se misturam.

Os ataques a Basini, tanto violentos quanto sexuais, prognosticam as formas estranhas, e apavorantes, que a violência adquiriu em nossos dias, quando paixão e ódio, fé e violência, atração e repugnância tanto se confundem. Nosso mundo sem limites, em que cada vez fica mais difícil dizer palavras simples como “amor”. Nos comentários que entremeiam o relato, Robert Musil ainda tenta salvar Törless do pior. Em dado momento, reduz os sentimentos que o rapaz acalenta por Basini a “um mal-entendido, a interpretação errada de uma sensação”. Talvez o próprio Musil, com o espírito ainda preso ao século 19, não suportasse a descoberta assombrosa expressa por Freud, seis anos antes, em A Interpretação dos Sonhos: a de que carregamos dentro de nós uma sombra muito mais potente do que a razão nos permite aceitar.

Törless passa a ver o que Basini lhe oferece como algo “feio e indigno”. Essa negação, contudo, não mata a atração que o agita. Em novo comentário, Musil antevê – como atenuante – seu futuro como um homem refinado e sensível, “observando as leis e seguindo em certa medida a moral da sociedade”. Nem essa visão benigna, porém, desmancha a perturbação que o futuro carrega. Tampouco apaga a devastação interior que o jovem rapaz atravessa. Musil ainda tenta salvá-lo, dizendo que seus atos se movem “não por perversão, mas devido à sua momentânea desorientação psicológica”. Esquece-se, assim, que também o mundo dos adultos é repleto de perigos e alçapões.

Os amigos se dedicam, cada vez mais, a judiar e humilhar Basini, que se torna, assim, o bode expiatório do que eles não suportam carregar dentro de si. Anunciam-se aqui duas práticas odiosas que o desfecho do século 20 consagraria: o bullying e a tortura. Oscilando entre a vergonha e o desejo, Törless, só mesmo quando as coisas chegam a seu extremo, decide se rebelar do jugo dos amigos para tomar a defesa de Basini. Toma coragem ainda para dizer a Reiting, um dos dois amigos torturadores: “Um dia tive respeito por você e Beineberg, mas agora vejo o que são. Idiotas embotados, nojentos e animalescos”, desafoga-se.

No fim, quando tudo parece – apenas parece – ter passado, Törless resume seu aprendizado: “Sei que as coisas são coisas e sempre o serão, e que sempre as verei ora de um jeito, ora de outro”. Descobre, enfim, que a realidade é móvel e traiçoeira, que os sentimentos não cabem dentro dos pensamentos e que, se desejamos ser homens civilizados, só nos resta aceitar esse turbilhão. “Existe algo obscuro em mim, debaixo de todos os pensamentos”, pensa ainda. Se não defrontamos a escuridão, nada mais tem sentido.*JOSÉ CASTELLO É JORNALISTA, MESTRE EM COMUNICAÇÃO PELA UFRJ E ESCRITOR. AUTOR DE 'RIBAMAR’ (BERTRAND BRASIL)

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