O romance Afirma Pereira, do escritor italiano Antonio Tabucchi, publicado em 1994, expõe a ferida das ditaduras na sociedade e mostra como a isenção não é uma escolha em tempos conflituosos – mesmo para os mais conformados. Com a trama ambientada em Portugal, a história teve no cinema uma versão dirigida por Roberto Faenza no ano seguinte, 95, com Marcello Mastroianni como Pereira, jornalista veterano que cuida da página cultural do Lisboa, um jornal conservador.
Adaptado para a linguagem dos quadrinhos pela primeira vez em 2015, pelo francês Pierre Gomont, Afirma Pereira ganha as cores quentes e saturadas de uma Lisboa em pleno verão, sob a mordaça do regime fascista. Além de trazer a essência do romance de Tabucchi, o quadrinho conserva o lugar de fala do jornalista como um observador crítico da sociedade (no caso de Pereira, isso se engrandece à medida que entra em contato com os revolucionários).
Gomont transforma as emoções de Pereira em imagens. Os golpes da consciência surgem bruscos e mostram o jornalista veterano arfante, sua figura ora se apequena, ora engrandece – às vezes um ponto diante da imensidão, à mercê de uma gastura espiritual. Enfastiado, Pereira tem sua rotina lânguida interrompida pelos arroubos da ditadura de Salazar, os desaparecimentos chegam aos seus ouvidos por terceiros. Nada está como era antes e, aos poucos, ele nota episódios violentos cada vez mais próximos de si. Seja no caminho do trabalho ou através da janela, esse instante de preocupação é projetado no quadrinho em contraste com a figura obesa do protagonista.
O paisagismo urbano de Gomont (tal qual um “urban sketcher”) dialoga bem com as feições do quadrinho à moda da Banda Desenhada Franco-Belga – com detalhes primorosos, da expressão carregada e bufante a gotas de suor. Algumas hachuras dão contornos psicológicos às feições dos personagens, mas com certa sobriedade, certamente inspiração no traço do italiano Gipi.
Nessa caminhada repleta de angústia, Gomont transforma a depressão em uma imagem sólida que poderia ser um diabinho, destes que surgiam nos desenhos animados para tentar seus hospedeiros. Essa consciência ganha múltiplas vozes, afinal, é a moral intransigente do personagem que o açoita, estando o jornalista à mercê de seus paradigmas. Há ali um homem tradicional, católico e viúvo, já calejado dos anos. Esse processo de ruminação é colocado no quadrinho em primeiro plano, com as conversas do homem com sua consciência, vice e versa.
Um trunfo da hq são as feições encarnadas pelos personagens secundários, burocratas que cercam a vida de Pereira marcados por sombras e riscos expressivos. A aparência é, muitas vezes, monstruosa, como a do colega Silva, um resignado que faz o tipo bolsominion, para trazer uma personagem do Brasil atual.
Monteiro Rossi chega como o empurrão necessário para romper com as tradições e manias do homem, que mantém o retrato da falecida esposa em um arauto em sua casa. Aos poucos, Pereira é obrigado a olhar ao redor e escapar de seus rituais e manias para sentir-se relevante novamente.
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