Da baciada de obras de ficção que li em 2021, Quando Deixamos de Entender o Mundo foi a de que mais gostei. O que me configura menos como esnobe do que como maria vai com as outras: o livro concorreu ao International Booker Prize, pontificou na lista dos 10 melhores da New York Review Of Books, foi indicado por Barack Obama num tuíte natalino e já traduzido para 22 idiomas (a versão espanhola está na décima edição). Mas será mesmo ficção? O chileno Benjamín Labatut – com cabelos negros de Medusa e tatuagens que lhe estampam os braços feito pinturas rupestres – nasceu em Roterdã há 42 anos, e viveu uma infância e adolescência nômades: Holanda, Argentina, Peru. Talvez por isso, a última seção deste livro foi escrita em inglês, e depois vertida para o espanhol. E é nela que a narrativa assume seu caráter ficcional, quando o leitor é apresentado ao vizinho do narrador. Até aí, lemos perfis biográficos de cientistas, que começam com o alarmante (a descoberta do cianeto, um veneno de ação tão fulminante que há apenas um relato do seu sabor) e avançam para o quase sobrenatural (o matemático que “criou um universo completo, do qual ele é o único habitante”).
O livro é um estudo do gênio que intempestivamente o ser humano deixou sair da lâmpada – e que nem sempre consegue voltar a pôr dentro dela. Descreve, por exemplo, a esgrima conceitual entre Erwin Schroedinger para unificar a química e a física e a rejeição deste esforço por Werner Heisenberg (“pura besteira!”). Mas a seção mais excruciante é a primeira, sobre Fritz Haber, Nobel de química, cujo trabalho na extração de nitrogênio da atmosfera permitiu os fertilizantes (“o homem que tirou o pão do ar”) e o crescimento populacional. Só que também desenvolveu o gás cloro, usado na 1ª. Guerra Mundial como arma letal, e mais tarde reciclado em Zyklon B, que matou milhões em campos de extermínio nazistas – incluindo a própria família de Haber (que era judeu alemão). Se a leitura deste livro é tão arrebatadora, é porque Labatut urde em apenas 170 páginas as ambiguidades mais alucinadas do Zeitgeist contemporâneo – na ciência, na filosofia e na literatura. Sim, a ciência é ao mesmo tempo uma caixa de Pandora e um ovo Fabergé – das vacinas e antibióticos às armas nucleares que Putin brande como um estilingue apocalíptico. Como diz no livro o gênio matemático Grothendieck: “Os átomos que dilaceraram Hiroshima e Nagasaki foram divididos não pelos dedos gordurosos de um general, mas por um grupo de físicos armados com um punhado de equações”. A mecânica quântica – que parece tão maluquete – sustenta a tecnologia que impulsiona a exploração dos confins do espaço e o funcionamento dos smartphones. O próprio Einstein passou seus últimos 30 anos suando para refutar a teoria quântica, sem o conseguir, mas resmungando: “Deus não joga dados!” (mas o Diabo talvez sim).
Já a filosofia atual (com o pós-modernismo e o pós-estruturalismo) postula que não há fatos, só interpretações, e que a objetividade é uma quimera fútil (ainda que os filósofos não consigam distinguir um fóton de um próton). Portanto, não há “verdade” – tudo seria ficção, mesmo a ciência mais circunspecta (daí o “princípio da incerteza” de Heisenberg). Ora, se tudo é ficção, o que sobra para a literatura, um simulacro que presumivelmente dá rédea solta à imaginação? A literatura atual tem em parte se socorrido na autoficção (um combo de autor + narrador + protagonista) e na metaficção, quando o que interessa são menos os fricotes dos personagens do que as engrenagens narrativas. E, no entanto, Labatut desatou este nó cego. A astúcia do chileno foi contar histórias mirabolantes (o uso da cor azul da Prússia pelo pintor holandês Pieter van der Werff no século 18) com dicção ensaística – mas ir aos poucos infiltrando no texto os sortilégios feéricos da fantasia. Como disse um personagem de um filme de John Ford: “Quando a lenda é mais atraente do que o fato, publique-se a lenda”. Ou seja: que os cientistas continuem com a química, pois os melhores ficcionistas continuarão com a alquimia, transformando chumbo em ouro.
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