Quatro décadas sem a prosa do detetive Hammett

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Escriturário, detetive, soldado, preso político, roteirista de cinema e, especialmente, grande renovador da história policial, Dashiell Hammett foi enterrado em um caixão de US$ 65, vestido com o terno que usara para a estréia da peça Toys in the Attic (escrita pela sua companheira Lillian Hellman), no cemitério de Arlington, em Washington, conforme sua vontade. No dia seguinte à sua morte, ocorrida a 10 de janeiro de 1961, o jornal Los Angeles Times fez um obituário preciso: "Hammett está morto agora e seus pecados ideológicos podem ser enterrados com ele. Não temos intenção de falar mal dos mortos, mas apenas observar que o gênio de Hammett mudou a forma da literatura policial e - sem querer desonrar os clássicos - para melhor." Poucas linhas e um resumo breve mas suscinto de uma figura complexa: em 66 anos de vida, Samuel Dashiell Hammett tornou-se famoso não só por escrever cinco romances e cerca de 80 novelas policiais, revolucionando o gênero, mas também por despertar a ira do FBI, que o acusava de ser membro de "uma organização que acredita na derrubada do nosso governo pela força e pela violência". Em outras palavras, comunista. Na semana que marca os 40 anos de sua morte, a editora Record lança um título inédito em português, Tiros na Noite (527 páginas, R$ 49), seleção de contos publicados originalmente em revistas como The Black Mask e Sunset. Já a Rocco coloca nas livrarias, a partir de segunda-feira, O Outro Lado da Noite - Filme Noir (256 páginas, preço a definir), em que A.C. Gomes de Mattos costura múltiplas visões do clássico gênero surgido na década de 40 e faz uma lista das fitas mais representativas, como Capitulou Sorrindo, inspirado em A Chave de Vidro, de Hammett, que o Telecine Classics exibe amanhã (06) às 22h, em seu ciclo O Cinema das Sombras. Hammett foi o grande renovador da história policial: muita ação, pouca conversa. E, pela primeira vez, um pouco de psicanálise. A experiência como detetive deu-lhe a visão realista e crua do mundo da bandidagem. Tiros na Noite (Nightmare Town, no original) é um exemplo preciso da influência que o escritor sofreu durante os cinco anos em que trabalhou na Pinkerton, famosa agência de detetives profissionais, sediada em Baltimore, cujo lema era "Nós nunca dormimos". Começou em 1915, quando tinha 21 anos, como escriturário, mas logo descobriram que daria um bom detetive. Naquele período, com um salário de US$ 21 semanais, fez de tudo, exceto, talvez, matar: manteve contatos com punguistas, traficantes, contrabandistas, ladrões de banco. Todas as mulheres com quem cruzara durante o expediente eram vigaristas, prostitutas ou chefes de quadrilha, ou todos os três. Espiou por buracos de fechadura, aprendeu a distinguir armas, descobriu a gíria do submundo, viu gente morrer e ganhou cicatrizes de faca. Macetes - Hammett tinha grande respeito pelo chefe do escritório, um homem gordo chamado James Wright, que lhe ensinou todos os macetes de serviço e que seria modelo para seu personagem Continental Op. Gostava do trabalho e andava armado, mas, depois de disparar contra um ladrão que tentara invadir um depósito de pólvora, decidiu nunca mais usar uma arma, a não ser para caçar. Serviu no Exército na 1.ª Guerra Mundial, quando passou a maior parte do tempo hospitalizado, por causa de uma gripe. O saldo positivo foi a paixão por uma enfermeira, Josephine Dolan, com quem teve uma filha. Sem emprego, decidiu escrever e, depois de alguns contos, iniciou a famosa colaboração em uma revista popular chamada The Black Mask, editada por H.L. Mencken. Hammett apareceu no índice a partir de 1923 e, com Mouse Dick, lançou o personagem Continental Op, um sujeito sem nome, sem rosto, sem estado civil, que narrava a história em primeira pessoa. De fevereiro de 1927 a junho de 1930, a revista publicou em forma de série os cinco primeiros romances de Dashiell Hammett: O Grande Golpe, Safra Vermelha, Maldição em Família, A Chave de Vidro e O Falcão Maltês, apresentando o famoso detetive Sam Spade, interpretado no cinema por Humphrey Bogart, em Relíquia Macabra. Naqueles anos 30, já famoso, seguiu para Nova York, onde teve uma vida devassa, bebendo doses cavalares, freqüentando festas e conquistando belas mulheres, até conhecer Lillian Hellman e ser contratado como roteirista em Hollywood, em que saboreou o sucesso com "Ruas da Cidade" e a adaptação de A Ceia dos Acusados. A bebedeira, porém, era rotineira, a ponto de o roteirista Nunnally Johnson, seu amigo na época, escrever: "(Hammett) era um homem que não tinha esperança de permanecer vivo por muito tempo além da quinta-feira, por isso gastava seu dinheiro e a si mesmo com tanta imprudência." Mesmo doente, conseguiu recrutar-se e participar da 2.ª Guerra Mundial - tornou-se um sargento conhecido como um militar excêntrico, bêbado e iconoclasta. O fim do conflito trouxe a guerra fria e Hammett, perseguido pelo FBI desde que se filiou ao Partido Comunista em 1936, era alvo constante dos inquéritos. Recusando-se a delatar os amigos e acusado de desacato à autoridade, foi condenado a três anos de prisão. O dinheiro dos direitos autorais foi retido e seus bens, colocados à disposição da Justiça. Encaminhado à prisão federal de Ashland, Kentucky, lavou latrinas, teve comportamento exemplar até ser libertado, profundamente doente, com câncer no pulmão. No seu enterro, Lillian Hellman discursou: "Dash nunca fez o jogo de ninguém, a não ser o seu. Nunca mentiu, nunca enganou, nunca se humilhou."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.