A identificação é um recurso que consiste em apropriar para si características que são de outra pessoa. A técnica é muito explorada em filmes e séries, para fazer com que os espectadores se sintam representados. É através dela que conseguimos chorar pela perda de um amor fictício, torcer pela vitória de um completo desconhecido ou até ter esperança de encontrar uma solução para o nosso problema, uma vez que os protagonistas também conseguem. Isso é ainda mais forte com os realities shows, afinal são pessoas comuns assumindo o papel principal.
O gênero chegou ao Brasil nos anos 2000. E só foi ganhando mais adeptos com títulos que conquistaram o coração dos brasileiros como Big Brother Brasil, No Limite e Masterchef.
Nos Estados Unidos, um que chamou especial atenção pelo seu modelo único - que juntava realities de reformas e decoração com transformações no visual - era Queer Eye, lançado em 2018 pela Netflix. A série americana hoje está em sua sexta temporada, com um especial no Japão e uma versão alemã, lançada este ano. Agora, o Brasil também ganha uma versão para chamar de sua a partir desta quarta (24) no streaming.
A base para cada episódio é a mesma: um grupo de cinco especialistas ajudam uma pessoa a repensar seu estilo de vida. Isso é feito através da expertise dos chamados “fabulosos” com conversas, dicas e muita escuta - algo que ajuda na autoestima, qualidade de vida e até o encarar das dores dos personagens. Assim, o grande diferencial de Queer Eye são as relações humanas ali criadas.
"A gente está falando sobre pautas universais: rejeição, aceitação, luto, conquista, por isso a gente acredita que vai ser um sucesso”, diz Guto Requena, especialista em design da série.“É a história de todo mundo. A gente se identifica de alguma maneira, em algum momento e somos tocados”, complementa Fred Nicácio, especialista de bem-estar.
De acordo com eles, a transformação da série ocorre de dentro para fora, algo que vai além do estético e do físico. E por isso mesmo, toca aquele que vê ou participa do processo. “A gente foi lá para tirá-los de uma inércia e fazê-los olhar para si. Só que ao mesmo tempo esse é um exercício de mão dupla: olhar pra eles, é olhar para gente. A gente vai se transformando e aprendendo em cada contato”, afirma Fred.
FORMATO
Os cinco especialistas se dividem em áreas distintas: bem-estar, design, cultura, estilo e beleza. A escolha de cada um se deu, em primeiro lugar, pela maneira como eles performam a própria profissão, mas também pela sintonia que dividem. “A nossa van (lugar onde os cinco fabulosos são apresentados a história do personagem e se deslocam para a casa de cada um) se tornou um divã. A gente teve uma troca muito grande e muito importante. De contar coisas pessoais do dia a dia, compartilhar, desabafar, coisas íntimas mesmo”, conta Rica Benozzati, especialista em estilo.
Já os seis personagens, cada qual enfrentando uma dificuldade na vida - desde controle de gastos até falta de cuidado pessoal, se mostraram abertos e vulneráveis. “Ao longo dos dias a gente cria um lugar de confiança, onde eles se sentem de fato confortáveis para poder se abrir e até chorar”, explica Yohan Nicolas, especialista em beleza.
O processo dura cinco dias, mas só são mostrados 45 minutos para o espectador. “A câmera fica ligada o tempo todo, de maneira muito discreta, tanto que a gente esquece com muita facilidade dela e o momento se torna verdadeiro. Eu não imaginava que um programa de reality poderia ser tão real”, afirma Rica.
A diretora Andrea Cassola permite que a conversa seja natural e por isso mesmo não existem gritos de “ação” ou “corta” durante as gravações.
Uma das diferenças entre a versão brasileira e a americana é a criação da categoria bem-estar, a qual substitui “Foods & Wine” da versão original. “Essa adaptação foi muito providencial para o Brasil, afinal estamos falando de um país que ainda está no mapa da fome”, rebate Fred. “O ‘bem-estar’ é muito abrangente porque ele fala realmente sobre como a pessoa está se sentindo. Eu trago a minha visão de médico, mas também minha vivência prática de uma vida saudável”, diz ele que é dermatologista.
Existe também uma fluidez muito mais perceptível, a qual permite uma conversa entre as categorias - como cultura e bem-estar. “A minha área fala muito sobre dar uma modelada em algum ponto que talvez a pessoa se perdeu no caminho, de não ter mais tempo de diversão, de não ter tempo pra si”, reflete Luca Scarpelli, especialista de cultura, que acredita que essa mudança vem através da escuta. “Muito mais do que chegar e falar o que a pessoa tem que fazer, a gente a escuta, honra sua história e só então pensa no que é bem-estar para ela, o que é cultura para ela.”
PROTESTO
Queer Eye é uma adaptação baseada na série de sucesso original dos EUA Queer Eye for the Straight Guy, exibida pelo canal a cabo Bravo por cinco temporadas em 2003. Em uma época na qual o casamento de mesmo sexo não era legalizado no país, cinco homens homossexuais protagonizavam uma das séries de maiores sucessos da época.
Em 2018, com o reboot, os lugares visitados pelos especialistas eram regiões centrais nos Estados Unidos, como o estado de Missouri, Texas e Georgia. Também conhecido como as regiões mais conservadoras do país.
Hoje, o Brasil é um dos países que mais mata pessoas LGBTQIA + no mundo. De acordo com a Agência Brasil, só em 2021 houve pelo menos 316 mortes desse tipo - um número que representa um aumento de 33,3% em relação ao ano anterior. Junto a isso, o mundo vive uma onda de polarização, guerras e violência, o que a série pretende responder com amor.
“O programa é um sopro de esperança. A gente já vê tanta coisa que revolta, que machuca, que é bom também ter esse conteúdo de acolhimento e amor”, opina Luca. “E num Brasil tão polarizado, onde é branco ou é preto, o Queer Eye Brasil mostra que entre o branco e o preto tem vários tons de cinza que a gente pode se adaptar. Você não tem que ser nada, você tem que ser do jeito que você é”, completa Fred.
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