'Quem nasceu antes da internet é como um imigrante hoje', diz Teixeira Coelho

Intelectual analisa rupturas do mundo digital no livro 'eCultura', mas mostra que esse universo já existia até mesmo nos mitos gregos

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Para os nativos do mundo analógico, a cultura digital parece ter sido uma mudança tão disruptiva e repentina que sua predominância atual os faz sentir como imigrantes em sua própria terra. É essa a definição do professor e ensaísta Teixeira Coelho em entrevista ao Aliás: “A geração que nasceu na era da internet é o falante nativo dessa linguagem. Os que nasceram antes do advento da internet são os imigrantes, e eles sofrem toda a defasagem, passam por todo o estranhamento pelo qual passam imigrantes.”

Teixeira Coelho, autor de 'eCultura: A Utopia Final' Foto: Werther Santana/Estadão

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Escritor, crítico de arte e estudioso de políticas culturais, Teixeira Coelho é um verdadeiro intelectual renascentista, que reúne diversas perspectivas, uma raridade nos tempos contemporâneos, com áreas do conhecimento tão fragmentadas. Nos últimos anos, por meio de vários livros publicados em parceria do Observatório Itaú Cultural com a editora Iluminuras, Coelho vem dedicando seus esforços a compreender as mudanças pelas quais passa o mundo com sucessivas revoluções tecnológicas. 

As mais recentes obras dessa coleção são duas. A primeira é eCultura: A Utopia Final, em que Teixeira Coelho identifica e contextualiza os aspectos desse novo universo – batizado por ele de eCultura – em contraste com as antigas estruturas analógicas, ainda coexistentes. O segundo lançamento é A Máquina Parou, obra futurista do autor britânico E. M. Forster (1879-1970), em que ele, num exercício premonitório, antecipa tecnologias como as ligações por vídeo, a aviação comercial e a comunicação via internet – isso tudo na Inglaterra vitoriana, em 1909. 

Scarlett Johansson em cena de 'Ghost in the Shell' (2017) Foto: Paramount Pictures

Forster não é um autor costumeiramente associado à ficção científica. Em obras adaptadas para o cinema, como Passagem para a Índia, Uma Janela para o Amor e Retorno a Howard's End, ele pinta um panorama da passagem da sociedade vitoriana para o mundo moderno, explorando os embates entre classes, a sexualidade e outros temas caros à época. Entretanto, em A Máquina Parou, Forster sai de sua zona de conforto realista para imaginar um mundo futuro em que as pessoas não saem mais de casa, confinadas em meio a apetrechos tecnológicos. Todos conversam apenas à distância, por meio de hologramas e chamadas de vídeo. O mundo é regido pela “Máquina”, quase uma entidade divina – tanto que seu manual de instruções se tornou uma espécie de livro sagrado após a abolição das religiões –, um misto de internet das coisas, inteligência artificial e rede social onipresente que intermedeia todas as experiências humanas. 

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E esse planeta absolutamente racionalizado torna-se homogêneo: “Pouca gente viajava naqueles dias já que, graças à ciência, a Terra era exatamente igual por toda parte. Os relacionamentos inesperados, nos quais a civilização havia depositado tantas esperanças no passado, tinham desaparecido. De que adiantava ir a Pequim quando tudo era igual a Shrewsbury? Por que regressar a Shrewsbury se tudo era exatamente igual a Pequim?”

Forster narra a história de Vashti, uma mulher que vive feliz e conformada em seu quarto hexagonal conectada a milhares de outras pessoas, até que seu filho, Kuno, rebelde nato que vive do outro lado do mundo, pede um encontro com ela. “Quero conversar com você, mas não através desta Máquina irritante.” A atitude herética dele a deixa chocada: “Você não deve dizer nada contra a Máquina.” 

Kuno constata que a Máquina está apresentando defeitos, mas ninguém quer ouvi-lo. Tão acostumadas a serem mimados pela tecnologia, as pessoas simplesmente se conformam aos problemas que ela lhes impõe. “O tempo passou e as pessoas não mais percebiam o defeito. As falhas não haviam sido sanadas mas os tecidos humanos, naqueles dias, tornaram-se tão subservientes que se adaptavam com rapidez aos caprichos da Máquina.” 

Embora a função da ficção científica não seja prever o futuro, é inegável que, por sua natureza, o gênero comumente antevê questões com anos de vantagem. “O cinema e a literatura, há muito tempo, estão antecipando uma série de coisas que podem acontecer, geralmente as ruins”, afirma Coelho. “O problema é que ninguém leva isso a sério. Quando Forster escreveu, críticos puseram essa obra de lado como irrelevante. Minha esperança é que os livros e filmes estimulem a sensibilidade das pessoas.”

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Forster publicou A Máquina Parou 80 anos antes do surgimento da internet, mas já em seu tempo a comunicação se tornava mais veloz e os meios de transporte passavam por uma revolução que reduzia as distâncias geográficas. A popularização do carro e a ascensão da aviação fizeram com que as pessoas perdessem a referência espacial de outrora, algo que Kuno constata ao ousar se aventurar para longe de seu quarto com as próprias pernas, algo impensável nessa distopia. “Você sabe que perdemos o sentido do espaço. É comum dizer ‘o espaço foi abolido’ mas não abolimos o espaço, apenas seu significado”, diz Kuno à mãe, explicando que suas caminhadas resgataram o sentido de “perto” e “longe”. “O homem é a medida. Essa foi minha primeira lição. Os pés do homem são a medida da distância, suas mãos são a medida do que pode ter, seu corpo é a medida de tudo que pode ser desejado e querido e que é bom.”

É justamente essa experiência em primeira mão, não mediada por uma máquina ou ferramenta, que Forster, já em sua época, temia estar se diluindo com todas as maravilhas tecnológicas da modernidade. “A ideia de que as pessoas não estão mais vivenciando a realidade vem de longe, desde Walter Benjamin, que se refere aos sobreviventes da 1.ª Guerra Mundial como incapazes de experimentar aquilo que estavam vivendo”, pondera Coelho. “Marx dizia que o proletário é um alienado do seu trabalho, isso significa que ele não experimenta o próprio trabalho que lhe foi tirado. Isso passa por várias culturas, mas esse processo está sendo levado a um nível exacerbado.”

Pois essa incapacidade de experimentar em primeira mão a realidade, e não por intermédio de um dispositivo, é um dos pontos centrais da eCultura, conforme Coelho – que assina também o posfácio da novela de Forster – nos mostra em seu livro. “Grande parte, se não tudo, do que se colocava como ponte (como tal, possivelmente necessário) entre o sujeito e seu objeto, entre o buscado e o obtido, desaparece ou, pelo menos, minimaliza-se”, escreve ele. 

Entre os intermediários abalados pela eCultura estão: o professor, entre o aluno e o conhecimento; as salas de cinema, entre o diretor e o espectador; a livraria, entre o livro e o leitor; a agência de viagem, entre o hotel e o hóspede… Os exemplos são infindáveis. Cursos online, Amazon, Uber, Airbnb, Netflix e diversos outros serviços substituem antigos intermediários. 

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Todavia, Coelho nota que essa horizontalização é apenas aparente. Assim como, na ficção de Forster, a Máquina se tornou o nó central da rede humana, em nosso mundo também “a desintermediação promove uma imediata reintermediação, ou rearranjo das intermediações de modo a concentrá-la em alguns poucos mediadores, com tendência para a concentração num único.” Dessa forma se vê de modo recorrente o fenômeno de um segmento inteiro naufragando graças a uma startup ou aplicativo, frequentemente comprado depois por uma gigante do Vale do Silício, concentrando ainda mais o poder entre poucas empresas.

Não apenas a novela de Forster, mas toda a história humana traz indícios de que a eCultura não é uma particularidade do século 21, e Coelho procura deixar claros os traços dela no passado distante, desde os autômatos humanoides construídos por Hefaístos na Ilíada, de Homero, até o robô gigante de bronze Talos, que protege a mãe do rei Minos de Creta no poema épico Argonautica, de Apollonius Rhodius. “O sonho de criar extensões do ser humano na forma de máquinas primeiro mecânicas e, depois, dessa máquina das máquinas que é o computador, capaz de assumir um controle crescente das atividades de trabalho, braçal ou não, é tão antigo no Ocidente quanto as primeiras manifestações de sua cultura fundacional”, escreve Coelho.

O intelectual admite que lutar contra as inovações tecnológicas é inócuo, “seria como dizer que se quer acabar com a experiência do livro em papel com tipos móveis em favor de pergaminhos manuscritos”, mas se preocupa com as decisões que a inteligência artificial pode tomar por conta própria se não for bem implementada. Carros autônomos são apenas um dos cenários abordados pelo livro. Para isso, devemos, de acordo com ele, conceder valores à tecnologia — algo que ainda estamos distantes de conseguir, ele admite, uma vez que nem os próprios seres humanos conseguem entrar em acordo sobre os valores que querem seguir, quanto mais impô-los às suas máquinas. 

Uma das soluções apontadas por Coelho é superar o abismo entre as “duas culturas” apontadas por C.P. Snow, as ciências exatas e as humanidades. Para ele, as ciências naturais têm a oferecer “o método, a investigação, a crença na comprovação factual daquilo que é dito”, enquanto as humanas colaboram com “o pensamento divergente e o pensamento lateral, que são coisas que os cientistas nem sempre têm; o pensamento dos cientistas é cada vez mais convergente, ele delimita um foco e faz convergir para um objeto tudo o que ele tem”. 

É dessa forma, criando pontes entre opostos – exatas e humanas, analógicos e digitais – que Teixeira Coelho vem tentando pensar novos caminhos para a humanidade. Como um imigrante nesse mundo da eCultura, ele se aproveita de sua vantagem: “Estando de fora, é possível ver o que os nativos não conseguem perceber”.

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