Quem pode tomar o lugar do Nobel Saramago em seu centenário?

José Luís Peixoto, Gonçalo Tavares e Bruno Vieira são três entre os portugueses cotados para o posto do autor, vago desde sua morte

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Por Paulo Nogueira

Quem será o delfim de José Saramago no panteão das letras portuguesas? A pergunta pode implicar três respostas: as opiniões dos críticos e leitores portugueses, e a respectiva cotação no Brasil. Provavelmente, se dependesse dos brasileiros, o herdeiro do manto seria Valter Hugo Mãe, cuja reputação literária em Portugal está longe de ser excelsa.

A discrepância na tietagem literária nas duas margens do Atlântico não é de hoje. Em vida, a nêmesis de Saramago foi Lobo Antunes, para muitos críticos lusos de pedigree superior ao autor de Memorial do Convento.

O escritor português Bruno Vieira  Foto: Bertrand Brasil

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Candidatos a sucessores não faltam, tal a vitalidade da literatura portuguesa contemporânea. Entre os varões, há uma tríade que é quase barbada: Gonçalo M. Tavares, José Luis Peixoto e Bruno Vieira Amaral (este último, autor de uma magistral biografia de José Cardoso Pires, outro ficcionista luso do século 20, já falecido). Entre as mulheres, Dulce Maria Cardoso, Ana Teresa Pereira, Inês Pedrosa, Lídia Jorge...

Uma nota pessoal: pouco depois de me expatriar em Portugal, ainda muito jovem, convivi quatro dias com Saramago. Ele acabara de lançar Viagem a Portugal, uma obra de não-ficção, e a editora dele convidou jornalistas para um passeio pelo país, ciceroneados pelo autor. Saramago foi cordial comigo, insistindo no apreço pelo Brasil. Hoje, o canal estatal da TV portuguesa está exibindo uma série sobre aquele mesmo livro, apresentada por Fábio Porchat.

Escritor português Gonçalo M. Tavares, autor de 'Canções Mexicanas', 'Jerusalém', entre outros Foto: Companhia das Letras

Eu também vivia em Portugal na retumbante estreia de José Luis Peixoto – que em 2024 fará 50 anos e que destaco aqui. O impacto de Morreste-me foi sísmico. Ao comentar o prodígio, ouvi mais de um autor rosnar o apelido de Peixoto que durante algum tempo pegou: o “Eucalipto”. Naquela época, a União Europeia exortava o governo português a substituir as lavouras tradicionais por plantações extensivas de eucaliptos, supostamente mais lucrativas.

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Claro que classificações estéticas são movediças (basta googlar a lista do Nobel da Literatura. Voltaire chamou Shakespeare de “selvagem bêbado”, Mencken grunhiu que Fitzgerald era uma piada e Nabokov considerava Dostoievski “medíocre”. E sim, inúmeros críticos são autores fracassados – mas isso inúmeros escritores também o são... Um critério decente para o cânone é o de Harold Bloom: “Esplendor estético, vigor intelectual e sabedoria. Pressão social e modismos jornalísticos conseguem obscurecer, por algum tempo, tais padrões, mas obras datadas jamais sobrevivem. A mortalidade flutua no ar, e todos aprendemos que o tempo triunfa. Vivemos um intervalo, e então nosso lugar não mais nos reconhece.”

José Luís Peixoto nasceu em Galveias (título do romance que venceu o prêmio Oceanos em 2015), vilarejo do Alentejo com mil habitantes. Está traduzido em 30 idiomas (o primeiro autor em língua portuguesa vertido na Armênia, na Geórgia e na Mongólia). Aos 27 anos foi o mais jovem vencedor do Prêmio José Saramago, com Nenhum Olhar. Em 2007, Cemitério de Pianos embolsou o prêmio Otra Mirada, para o melhor romance estrangeiro na Espanha. Com Livro, ganhou o “Libro d’Europa” como o melhor romance europeu de 2012. Uma característica de alguns autores portugueses atuais é a chamada “prosa poética”, que não me agrada (cada macaco no seu galho). Mas Peixoto é também um aclamado poeta, e foi nesta categoria que recebeu o prêmio da Sociedade Portuguesa de Autores por A Criança em Ruínas.

O escritor português José Luís Peixoto, que escreveu o romance 'Autobiografia', sobre Saramago Foto: Companhia das Letras

Peixoto é versátil. Cemitério de Pianos (resenhado no Guardian por Ursula K. Le Guin, o que dá uma ideia do prestígio dele) parte de um estopim histórico: a vida de Francisco Lázaro, o primeiro atleta a morrer durante uma prova nas Olimpíadas, na maratona de Estocolmo, em 1912. Consta que a morte foi por superaquecimento corporal e desequilíbrio eletrolítico: ele havia depilado a maior parte do corpo e não conseguia suar, sucumbindo no quilômetro 30.

Reciclando uma premissa tão tragicamente empírica, Peixoto povoa a narrativa com dois Franciscos, pai e filho (o Lázaro bíblico é ressuscitado por Cristo) e um Hermes, neto do maratonista (o Hermes do mito grego é o deus da estrada, mas entre os egípcios Hermes Trimegisto é o inventor da escrita). Os dois Franciscos estão vivos e mortos, numa cronologia que é mais de Einstein que de Newton, com alusões que não existiam em 1912. Como o Jesus que ressuscitou o amigo morto, os Lázaros são uma família de carpinteiros, cuja oficina inclui uma sala apinhada de pianos quebrados.

Ecletismo? Em 2003, Peixoto publicou uma parceria com a banda portuguesa de heavy metal Moonspell, com um CD e uma coletânea de contos, ambos intitulados Antídoto. Os contos e as canções têm os mesmos títulos, sob a divisa: “Dois antídotos para um só veneno”. Na edição inglesa, essas micronarrativas góticas sobre Eros e Tânatos foram traduzidas por Richard Zenith, autor daquela que é talvez a biografia definitiva de Fernando Pessoa (que a editora Companhia das Letras está lançando agora). Já o ilustrador é o badalado quadrinista americano Michael Manning.

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O escritor português José Saramago, que completaria 100 anos em 2022 Foto: Ernesto Rodrigues/Estadão

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Mais versatilidade? Sai o rock pauleira, entra um totalitário cara de pau. Em 2012, o governo de Pyongyang promoveu uma festança para celebrar o centenário de Kim Il-sung, pai do regime comunista que aferrolha o país desde 1948. E, de quebra, bajular o novo ditador dinástico, Kim Jong-un (aquele com penteado tipo os Três Patetas). A efeméride foi rocambolescamente batizada de “The Kim Il-sung 100th Birthday Ultimate Mega Tour”. E um grupinho de ocidentais obteve a rara permissão para viajar pelo país por duas semanas. Entre eles, Peixoto, que voltou com o livro Dentro de Um Segredo.

Em termos de gatilho literário, é como se Orwell visitasse a Colônia Penal, de Kafka. “As estações, onde o trem para ou não, tinham sempre uma enorme fotografia de Kim Il-sung no ponto mais alto. Essas fotos ficavam no lugar onde, normalmente, deveria estar o relógio da estação. Assim, era como se Kim Il-sung medisse o tempo”. Uma versão opressiva da famosa picaretagem do príncipe Potemkin, amante de Catarina, a Grande, que, nas viagens da czarina russa, providenciava para que, em todas as paradas, ela fosse saudada entusiasticamente com faixas e cartazes de adoração em aldeias de fachada – cujo material fake já seguia na bagagem da própria comitiva.

Nobel de Literatura, Saramago fez discípulos na nova geração de escritores portugueses, como José Luís Peixoto e Gonçalo Tavares  Foto: Ernesto Rodrigues/Estadão

Se Saramago abriu uma vaguinha no cânone luso para Peixoto, nada mais justo que este escrevesse uma obra sobre aquele. Autobiografia é uma fantasia que enreda imaginação e realidade e as duas carreiras literárias, num labirinto de espelhos. Saramago não só foi um dos primeiros a saudar Peixoto, como também ele escreveu um romance sobre um escritor português e seu heterônimo: O Ano da Morte de Ricardo Reis.

Em Autobiografia, um jovem escritor – em crise depois de um primeiro romance de sucesso –, aceita escrever a biografia de José Saramago, às vésperas do anúncio do prêmio Nobel de Literatura, em 8 de outubro de 1998. Em Cadernos de Lanzarote, Saramago anotou: “Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objeto no chão. Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o contempla.” E o incipit do romance de José Luis Peixoto tem só uma linha: “Saramago escreveu a última frase do romance.”

A partir daí, esses dois Zés, mentor e pupilo, biografado e biógrafo, clássico e delfim, narcisistas como todos os artistas, interrogam-se reciprocamente: e agora, José?

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