Nenhum compositor foi mais amado por públicos de todo o mundo e ao mesmo tempo tão massacrado pela crítica quanto Sergei Rachmaninoff (ele insistia na grafia à russa, com dois “ff” e não “v” à francesa). Há 150 anos de seu nascimento, em 1.º de abril de 1873, e há 80 de sua morte, em 28 de março de 1943, sua obra permanece nos primeiros lugares em rankings dos compositores mais ouvidos nas salas de concerto, redes sociais, plataformas de streaming, em todo lugar, a toda hora. É o caso mais flagrante de descompasso entre péssima recepção crítica e formidável sucesso público. Seus concertos para piano n.º 2 e 3 estão entre os mais populares de todas as épocas – o terceiro ganhou o apelido “Rach 3″ no filme Shine, que em 1996 rendeu sete indicações para o Oscar e o prêmio de Melhor Ator para Geoffrey Rush, por encarnar o pianista australiano David Helfgott numa história verídica: pressionado pelo pai, um jovem músico acaba mentalmente perturbado ao travar uma batalha de vida ou morte para conseguir interpretar corretamente esse concerto dificílimo do ponto de vista técnico.
O outro enorme sucesso alavancado por sua música no cinema aconteceu em 1980, com Em Algum Lugar do Passado, estrelado por Christopher Reeve. Este viaja no tempo embalado pela décima oitava variação da Rapsódia Sobre um Tema de Paganini. São apenas três minutos de música, que contêm uma melodia poderosíssima, capaz de seduzir o público de concerto e levar às lágrimas quem assiste ao filme.
E, ainda por cima, é sua a peça para piano mais tocada no mundo nos últimos 131 anos: o Prelúdio em Dó Sustenido Menor, Opus 3, n.º 2. São 4 minutos de música que o jovem pianista de 18 anos compôs para ganhar uns trocados (40 rublos, então equivalentes a US$ 20). Foi o único dinheiro que recebeu pelo prelúdio que lhe deu fama eterna. Seu primo Alexander Siloti o tocou numa turnê pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. Da noite para o dia, tornou-se mundialmente conhecido. Em 1929, os estúdios Disney escolheram esse prelúdio para abrir e fechar o desenho animado clássico do Mickey: The Opry House.
ESTILOS. Existem dois Rachmaninoffs: o primeiro, que compôs a maior parte de sua obra, até 1917, cidadão russo. O segundo, exilado que se sustentou graças ao talento superlativo de pianista, e compôs muito pouco, quase nada. Só que cada obra foi forjada com imenso cuidado, resultando num diminuto pacote de obras-primas como a Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, as Danças Sinfônicas e Sinfonia n.º 3.
Do período russo, duas lembranças básicas: a infância abastada (seu pai era grande proprietário de terras) e a necessidade de se sustentar já no final da adolescência (seu pai torrou a fortuna). E duas paixões musicais: de um lado, Chopin, a matriz do piano romântico; e Tchaikovski, seu guru e guia, que lhe abriu caminhos. Sergei adorava tudo de Tchaikovski: balés, óperas, sinfonias.
Um longínquo carrilhão no crepúsculo! A música vem direto do coração, só fala ao coração; é amor!
Rachmaninoff sobre o que é música
Em 1932, já fora da então União Soviética desde 1917, fez sua profissão de fé numa carta: “O que é a música? Como defini-la? A música é uma calma noite de luar, o farfalhar das folhas das árvores no verão. A música é um longínquo carrilhão no crepúsculo! A música vem direto do coração e só fala ao coração; ela é amor! A irmã da música é a poesia, e sua mãe é a tristeza!”.
Sua atitude diante da vida e na criação era voluptuosamente romântica: entre 1895 e 1897, trabalhou duro em sua primeira sinfonia. Esforço malogrado, já que na estreia em São Petersburgo o compositor Glazunov regeu a obra indisfarçavelmente bêbado. A isso se juntou a quase hostilidade do público. Ele ficou tão chocado que jamais a quis ouvir novamente. Conhecer Tchaikovski em 1895, quando foi a Moscou para estudar no Conservatório local, mudou a sua vida para sempre.
Entre 1908 e 1917, pôs a seus pés o mercado norte-americano com o terceiro concerto para piano em 16 de janeiro de 1910, quando ele mesmo foi o solista, com a Filarmônica de Nova York regida por Gustav Mahler. No retorno dos Estados Unidos, foi direto para sua casa em Ivanovka, no subúrbio de Moscou. Ali se entregou aos afazeres diários que mais curtia: cuidar dos cavalos, pelos quais era apaixonado, cuidar da plantação, em que se destacavam os salgueiros.
Comprou um Mercedes-Benz (uma “Lorelei”). Dirigia o carro novinho em folha pelos arredores do sítio e por entre a plantação num tempo em que automóveis eram raridades luxuosas reservadas apenas aos multimilionários. “Ao reger uma orquestra, tenho a mesma sensação de quando estou ao volante: uma calma interior que me dá o domínio completo de mim mesmo e das forças que me rodeiam – as mecânicas e as musicais.”
Após a saída da Rússia no meio do tumulto da Revolução de outubro de 1917, firmou-se rapidamente no Ocidente como pianista sem concorrência, tocando não apenas sua música, mas também a de terceiros. Viveu as primeiras décadas da reprodução fonográfica. Existem mais de 10 horas de gravações dele, realizadas até perto de sua morte.
Sergei sempre viveu situação contraditória. Badalação justíssima para o pianista, e recalque cruel em relação aos concertos, as sinfonias, as Danças Sinfônicas, a Sonata para Violoncelo e a farta produção para piano, que contestam a facilidade com que chavões lhe são salpicados historicamente pela academia e repassados para a mídia, que abraça serelepe esse tipo de juízo apressado.
Existem bem poucos estudos e livros dedicados ao compositor. A rala bibliografia atesta o preconceito com que sua música é até hoje recebida nos círculos acadêmicos. Sergei sofreu duplo preconceito: no Ocidente, era visto como compositor ultrapassado, que batalhava pela melodia como núcleo central da música, num momento em que as vanguardas fugiam desse tipo de música. Um raro livro coletivo, lançado nos Estados Unidos no segundo semestre de 2022, a propósito do Festival de Música do Bard College, capitaneado por Leon Botstein, reúne vários ensaios instigantes (Rachmaninoff and His World, editado por Philip Ross Bullock).
Para Botstein, ele “parecia fora de sintonia não apenas com a nova música russa, mas também com as tendências europeias e americanas da música contemporânea; sugeria um apego nostálgico a uma Rússia pré-revolucionária amplamente reacionária, um regime agora julgado severamente, cuja cultura e sociedade eram vistas com ceticismo crítico. O ponto mais baixo da posição de Rachmaninoff como compositor entre uma parte significativa e influente da comunidade de músicos e críticos – mas não para o público amante da música – foi alcançado após sua morte – coincidindo, particularmente no Ocidente, com a Guerra Fria”.
Nas últimas três décadas, desde o colapso da URSS, as atitudes em relação ao compositor Rachmaninoff melhoraram dramaticamente nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, raciocina Botstein. O fenômeno é motivado “pela reconsideração de três grandes obras escritas no exílio (a Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, a Terceira Sinfonia e as Danças Sinfônicas) e pela mudança no gosto e julgamento musical”.
O compositor batalhava pela melodia como núcleo central da música, logo quando as vanguardas queriam se distanciar
Botstein é categórico: “A nova música tomou rumos inesperados no final do século 20, quando os compositores rejeitaram o que parecia ser uma ortodoxia acadêmica sobre as qualidades que a música contemporânea deveria ter e começaram a abraçar novamente a tonalidade e os ideais de expressão associados ao romantismo do final do século 19″. E conclui: “A música de Rachmaninoff era adequada para um retorno improvável, mesmo dentro do mundo cada vez mais rarefeito dos músicos, críticos e estudiosos”.
A tese é controvertida, mas ajuda a entender o fenômeno Rachmaninoff. Ao mesmo tempo, outro ensaio deste livro instigante, O Caso Rachmaninoff, escrito por Marina Raku, pesquisadora do Departamento de História da Música do Instituto Estatal de Estudos das Artes, de Moscou, reconstitui a história da recepção, na URSS, do compositor exilado, no período 1917-1945. Ele era discutido como uma relíquia do passado nos anos imediatamente seguintes a 1917, escreve Marina.
Em seguida ela cita o musicólogo Leonid Sabaneyev (1881-1968), que escreveu naquele momento o seguinte: “Temos uma tragédia de chorões (Tchaikovski, Rachmaninoff e agora Miaskovsky), essa fraca e lamentável tragédia de párias que nos dá um salão, ou um pesadelo, ou um nacionalismo etnográfico hermético. O que não temos é tragédia heroica e bravura majestosa, mas é exatamente disso que precisamos agora, quando não deveríamos mais falar para os requintados frequentadores de salão, mas para as massas, que estão esperando por um salto heroico”.
Rachmaninoff continuou frequentando as salas de concerto e editando partituras na URSS até o famigerado biênio 1931/32. “As autoridades não bloquearam a execução de sua música durante a década de 1920″, contrariando “uma atitude que era característica da política cultural soviética quando se tratava da questão dos emigrantes em geral”. Ele só foi banido mesmo a partir de 1931, por assinar uma carta aberta no The New York Times censurando o poeta Rabindranath Tagore por ter escrito um artigo no mesmo jornal tecendo elogios à União Soviética. Dando “apoio forte e injusto a um grupo de assassinos profissionais”.
O estopim para sua execração na URSS foi dado num concerto na grande sala do Conservatório de Moscou de Os Sinos, obra para solistas, coros masculino e feminino se alternando e orquestra sobre poema de Edgar Allan Poe. Os Sinos era obra emblemática porque naqueles dois anos o Kremlin destruiu igrejas, confiscou sinos para vendê-los a alto preço no Ocidente a fim de recompor a produção de cobre, insuficiente para as necessidades da economia soviética.
Ele só foi “reabilitado” como “patriota russo” porque doou muito dinheiro para o esforço de guerra soviético durante a 2.ª Guerra, cujo desfecho ele não viveu para presenciar. “A morte do compositor no auge da guerra o redimiu completamente na propaganda soviética. Ele foi adicionado às fileiras dos ‘patriotas russos’ oficiais, agora um termo de aprovação na retórica soviética. A morte do compositor no auge da guerra, separado de seus entes queridos e longe de sua pátria encharcada de sangue, emprestou-lhe uma aura trágica”, completa Marina.
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