Rádio completa 100 anos no Brasil em meio a desafio geracional

Internet trouxe programas com imagens e podcasts que mudam a percepção sobre os tipos de transmissões midiáticas

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Foto do author Julio Maria

Cem anos depois da primeira transmissão radiofônica no Brasil, com a voz do presidente Epitácio Pessoa espalhando-se por meio de uma antena instalada no Morro do Corcovado diretamente para aparelhos receptores ligados em Niterói, Petrópolis e São Paulo, o que é, afinal, o rádio? Um sobrevivente, diria quem se lembrar das ameaças de morte ao rádio anunciadas com a chegada da TV, depois da TV a cores, depois da internet e, mais recentemente, dos podcasts e da pandemia. Com as pessoas se locomovendo menos de carro durante o distanciamento social, o rádio, previam os observadores, sofreria uma baixa significativa de audiência. Nada disso. “Os ouvintes aumentaram nesse período”, diz Bia Ambrogi, presidente da Associação Brasileira das Produtoras de Som, a Apro+Som, que fala amparada por uma pesquisa recente.

A produtora Bia Ambrogi, presidente da Pro+Som. Foto: Werther Santana/Estadão Foto: WERTHER SANTANA

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Feita em 13 regiões metropolitanas do País, a Inside Radio 2021, realizada pela Kantar Ibope Media, mostrou a longevidade da mídia de massa mais resistente de que se tem notícia. Mesmo depois da profusão das telas, incluindo as TVs, e dos afetuosos podcasts, o rádio está forte. “Pense no aparelho de som de um carro”, diz o produtor e apresentador de programas, João Marcello Bôscoli. “Os toca-fitas chegaram e sumiram, depois vieram os toca-CDs e já sumiram, mas os rádios continuam lá.”

A pesquisa da Kantar faz um raio X dessa percepção.

1.) Oitenta por cento dos brasileiros ouvem rádio – não apenas o rádio aparelho, mas em todas as plataformas possíveis.

2.) Cada ouvinte passa por dia, em média, algo como quatro horas e 26 minutos conectado com as transmissões – um aumento de dois pontos porcentuais comparado com o ano de 2020.

3.) A maior parte dos ouvintes, isso já se sabia, são os mais velhos (21% têm mais de 60 anos, 20% têm entre 30 e 39 anos e 19% têm entre 40 e 49 anos). Os mais jovens, 57%, estão nas versões das emissoras para a internet. “Nenhuma das novas formas de transmissão extinguiu as outras”, diz Bia.

Jornalismo

Uma vez forte como mídia, vale saber, até porque seu futuro depende disso: e o conteúdo? As duas maiores potências do rádio – o jornalismo e a música – seguem na ponta dos investimentos das emissoras. O jornalismo, depois de algumas transformações, tem apostado em pelo menos duas estratégias de aderência virtual: as câmeras filmando programas para serem exibidos pela internet e o empacotamento de conteúdos para o formato podcast. Sobre a primeira estratégia, o rádio virando TV, há controvérsias. “Eu não sei se gosto deste modelo”, diz Emanuel Bomfim, diretor artístico da Rádio Eldorado. “Não tenho claro se isso é mesmo uma modernização do rádio ou se estamos indo em contradição com a essência do que é trabalhar com o mistério do som. O vídeo elimina esse mistério.”

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A produtora Bia Ambrogi, presidente da Pro+Som. Foto: Werther Santana/Estadão Foto: WERTHER SANTANA

Sobre os podcasts, cada conteúdo parece funcionar com uma lógica própria. Bia Ambrogi fala da necessidade geral da boa e ágil edição e da urgência de se conquistar o ouvinte nos primeiros três minutos de programa. “É o formato mais amigável às plataformas. Se quiser abranger mais público, os tempos curtos e médios têm mais adesão.” Ainda assim, ela diz, não é uma regra. Mano Brown faz entrevistas de até duas horas de duração em seu programa Mano a Mano, produzido pelo Spotify – algo que tem se tornado um case de sucesso.

Filhote do rádio

Seriam então os podcasts, sobretudo aqueles feitos com conteúdos das emissoras, um filhote do rádio que se alimenta do pai até o dia de devorá-lo? “Não existe essa concorrência”, diz o professor, jornalista e comunicador de rádio Heródoto Barbeiro. “O rádio como foi um dia irá desaparecer. Temos que usar os novos recursos para não ficarmos para trás.”

Um dos homens que mais entende de rádio no País, Luiz Fernando Magliocca, com passagens por várias e importantes emissoras, diz que as empresas de rádio demoraram para aderir à internet. “Custaram a perceber que ela poderia ser uma aliada, que deveríamos usar aqueles recursos a nosso favor.” Se hoje há prejuízos de audiência provocados por essa apatia? Provavelmente sim, mas é difícil quantificar. “Não havia como prever que seria assim”, ele diz. “A tecnologia anda depressa demais, e o rádio não tem esse tempo.”

A produtora Bia Ambrogi, presidente da Pro+Som. Foto: Werther Santana/Estadão Foto: WERTHER SANTANA

O rádio e o tempo. A fenomenal capacidade de automodernização a cada instante em que as pessoas estariam prontas a chamá-lo de velho é uma magia que mora nesse componente, o tempo presente. Ao contrário da experiência mais próxima de uma transmissão radiofônica, o podcast, o rádio é vivo e quente porque trabalha com o agora e quem ouve sabe que a pessoa que fala com ela está ali naquele instante, só naquele instante. “Alguém está vivo ao seu lado”, diz João Marcello. “E, como dizia o (ex-diretor de TV) Boni, gente gosta de gente”.

Era do rádio

E de música. A música impõe outras reflexões sobre o futuro. A origem do rádio, no início dos anos 20, fez o Brasil, como diz João, “se conhecer” logo depois de viabilizar a música como negócio. Os cantores espalhados por boates e cassinos abertos a partir de 1934 viram o rádio como um portal para a “Terra Prometida”. Eles podiam agora gravar seus 78 rotações e serem ouvidos por um país inteiro. Aliás, é curioso que Pelo Telefone, a primeira música catalogada como samba da história (apesar de ser um maxixe), foi lançada com a voz de Donga em 1917 sem que existisse um mísero rádio para tocá-la. Agora, o sonho era uma realidade.

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Havia música nos lares, e ela não saíam mais apenas dos pianos das famílias ricas ou dos violões das pobres. O aparelho era ligado e, entre as interferências de uma ou outra ligação telefônica, ouvia-se Carmen Miranda, Os Oito Batutas, Aracy Cortes, Francisco Alves, Noel Rosa, Gastão Formenti, Mario Reis, Pixinguinha e Vicente Celestino.

Anos 40 e 50

Assim, e cada vez mais popular, o rádio seguiu pelos anos 40 e 50, a época chamada de Era de Ouro, com Marlene, Nelson Gonçalves, Dalva de Oliveira, Angela Maria, Linda Batista e Jorge Goulart. Antenas mais poderosas faziam as transmissões chegarem cada vez mais longe e a qualidade do som melhorava até que, em 1959, sentiu-se a explosão sair de uma vozinha. Ao ouvirem seus pais escutando João Gilberto cantar Chega de Saudade no rádio, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo e alguns outros adolescentes decidiram tocar violão e não parar mais. O rádio era o inquestionável curador, avalista e bússola do norte que as próximas gerações deveriam seguir. Até que tudo virasse de cabeça para baixo mais uma vez.

Sem rádio, não há geração com identidade estética forte

A força do rádio deu-se outra vez no início dos anos 80, final dos 70, quando surgiram no Brasil as emissoras FM. A partir dali, mudaria a cabeça do próprio compositor. Ele precisava pensar música e arranjo de forma diferente se quisesse fazer parte dos artistas que passaram a ser absorvidos pelo segundo portal – aberto pelas frequências moduladas, de menor alcance e maior qualidade sonora. O rádio FM, com todo o brilho que garantia ao som, criava a música pop. E lá vinham, devidamente reorientados depois dos acústicos anos 70, Gil, Caetano, Milton, Djavan, Rita Lee, Raul Seixas, Tim Maia, Gal Costa, Bethânia, Roberto, Erasmo e, de forma póstuma por ter morrido no início da festa, Elis Regina. A indústria do disco, filha direta do rádio, crescia sobre milhões de ouvintes e cruzeiros novos.

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A partir dos anos 2000, o protagonismo do rádio passa a ser diluído pelas possibilidades trazidas pela internet. E diluídas também serão as próximas gerações de artistas a partir deste instante. “Para a minha geração, tudo acontecia no rádio. Agora, eu não diria desorientadas, mas as coisas ficaram mais difusas”, diz o cantor “parido” pelo rádio, Ney Matogrosso. Difusão, quer dizer Ney, não significa desqualificação. Artistas surpreendentes surgem sem tocar em nenhuma emissora, mas aí a discussão perde o foco. Voltando ao rádio, teria ele ainda poder de curadoria? Estaria ele desempenhando seu papel de, como nos anos 30, 40, 50, 60, 70, 80 e 90, sugerir aos ouvintes algo que eles desconheciam mas de que também poderiam gostar? “Gosto muito quando uma pessoa nos ouve e diz: ‘Gostei, não conhecia esse artista’. E, a partir daí, vai pesquisar”, diz Emanuel Bomfim, da Eldorado.

A produtora Bia Ambrogi, presidente da Pro+Som. Foto: Werther Santana/Estadão Foto: WERTHER SANTANA

Jabá

Ele faz um esforço de imaginação: “Como seria se nenhuma rádio aceitasse o ‘jabá’?” Muitas vezes institucionalizado pelas empresas, o pagamento por execução de certos artistas é um ato histórico desempenhado hoje por muitos empresários de duplas sertanejas, dentre outros, mas que já foi feito até por André Midani, chefão de gravadoras que tinham os maiores nomes da MPB sob seu controle.

A explosão do rádio como único emissor expande o universo musical em 100 mil vezes seu tamanho original, o que é lindo, mas cobra um preço de quem espera por novas “gerações de ouro”. “Quando vão aparecer novos Chicos e Caetanos?” Talvez eles já estejam por aí, mas é preciso procurá-los. O rádio não dá mais conta dessa curadoria. O ouvinte que só precisava ligar em uma emissora tem agora de entrar em uma plataforma de streaming e caçar algo que lhe interesse entre as 15 mil novas canções despejadas ali todos os dias só no Brasil.

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