A grande obsessão do empreendedor americano Peter Thiel é com o futuro. Nascido em 1967, filho de uma família de imigrantes alemães, sua reputação é cheia de boatos, rumores e lendas. Dizem que ele é um empresário implacável, de índole maquiavélica; afirmam que apoia financeiramente movimentos de extrema direita; que deseja destruir a democracia a qualquer custo. Depois advertem que ele é um vampiro, em busca da imortalidade por meio de novas tecnologias e também ao sugar o sangue de jovens cobaias – tudo isso em função de um porvir que, segundo o próprio Thiel, a humanidade abandonou para viver em um “falso progresso”.
Agora, vamos aos fatos. Thiel é um bilionário do Vale do Silício, com uma fortuna estimada em US$ 7,1 bilhões, dono das empresas PayPal (que antecipou os pagamentos virtuais na internet, eliminando a intermediação dos cartões de crédito), Palantir (cuja especialidade é a extração de dados pessoais para companhias de vigilância tecnológica) e a Founders Fund (um banco de fundos de investimentos).
Foi também um dos primeiros sujeitos a acreditar num fedelho chamado Mark Zuckerberg e em sua empresa Facebook. Apoiou Donald Trump em 2016 e em 2020. É homossexual assumido, mas de temperamento conservador. Considera-se um libertário, vigoroso defensor do livre mercado. E é fascinado pelo experimento científico “parabiosis”, uma forma de deter o envelhecimento humano.
O que poucos sabem é que Peter Thiel é também um pensador político – e talvez um dos mais importantes dos nossos dias. Apesar de ser conhecido pelo grande público como o autor de De Zero a Um (Objetiva, 2014) – best-seller que foi vendido como um manual para administrar startups de tecnologia –, o texto que realmente interessa para entender melhor a sua visão de mundo é o brilhante ensaio O Momento de Strauss, escrito em 2004 como reação aos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001 (e disponível no Brasil na coletânea Política e Apocalipse, lançada pela É Realizações).
Partindo deste traumático evento histórico que inaugurou no século 21 uma longa fileira de pesadelos infinitos, Thiel afirma que apenas comprovou o impasse da “imaginação liberal” dominante nos últimos 60 anos, desde o término da 2.ª Guerra Mundial. Não há mais diplomacia que resolva as escolhas extremas impostas pelo jihadismo, principalmente as que envolvam o impasse entre liberdade individual e segurança coletiva. Ações radicais devem ser adotadas no terreno da política, mesmo que sejam à custa do liberalismo tão adorado pelos intelectuais acadêmicos e pela elite sediada em Washington e em Bruxelas.
Existiriam três soluções, elaboradas por grandes pensadores modernos, para resolver tal encruzilhada, de acordo com Thiel: a de Carl Schmitt, a de Leo Strauss e a de René Girard. Os três nunca foram bem aceitos pelo establishment midiático. Schmitt é o mais polêmico de todos por causa das conexões com o nazismo, mas até hoje é citado como um grande constitucionalista pela casta jurídica internacional; Strauss foi contemporâneo de Schmitt, escapou da hecatombe hitlerista, exilou-se nos Estados Unidos e construiu uma impecável carreira como scholar de estudos clássicos; e Girard foi professor do próprio Thiel quando este estudou na Universidade de Stanford e um dos seus grandes ensinamentos foi a respeito da única constante que envolve a natureza humana, independentemente do tempo e do espaço. É o fato de que nós somos seres competitivos e imitamos os nossos semelhantes em todos os sentidos.
Foi a partir da constatação de que há uma estrutura nesta rivalidade antropológica que Thiel construiu não só o seu pensamento político, mas sobretudo o que seriam as suas estratégias como inovador de tecnologia e como empreendedor. O liberalismo, em especial o que é baseado em John Locke, seria uma mentira que encobriria não só o fato de que a competitividade está na nossa essência, mas fugiria do fato de que a violência sagrada domina a sociedade como um todo. O 11 de setembro explicitou esse horror. Com isso, Thiel propõe que Carl Schmitt seja um guia para impedir que atos abomináveis se espalhem entre os seres humanos, numa contenção autoritária que inevitavelmente terminará com a destruição da nossa liberdade. Ao mesmo tempo, o empresário reconhece que a perspectiva de Leo Strauss – a de se retrair do poder para buscar a virtude do espírito por meio da educação clássica – é um contrapeso ao radicalismo de Schmitt. Ainda assim, a solução de Strauss descamba na paralisia de quem ainda vive em um mundo determinado, em maior ou menor grau, pela imaginação liberal.
Já René Girard é o caminho do meio entre a força bruta de Schmitt e a virtude erudita straussiana, pois propõe uma compreensão humana da experiência religiosa, mas sem perder o lado transcendente. Thiel captou do seu antigo professor o detalhe de que toda ação política terminará em tragédia – e, portanto, em violência, especialmente contra o estadista que deseja comandar e controlar o mundo – e fez disso o eixo da sua cosmovisão.
No ensaio de 2004, escrito nos moldes de um código a ser decifrado somente por quem faz parte do seu “círculo íntimo” (uma mania entre quem acompanha à exaustão as obras de Strauss, defensor deste método), o dono da PayPal cita ninguém menos que Sir Thomas More, o santo, mártir e padroeiro dos estadistas, para guiá-lo em uma ação que faça alguma diferença em um ambiente onde “um dia tudo será revelado, todas as injustiças serão expostas e aqueles que as perpetraram serão tidos como responsáveis”.
Neste sentido, Peter Thiel é mais do que um pensador político ou um empreendedor que acumula o dinheiro pelo dinheiro. Ele se vê como uma espécie de profeta do Apocalipse. Todos os seus recursos financeiros – o financiamento de think-tanks da direita, o apoio a campanhas de candidatos republicanos para o Senado dos EUA em 2022 (como as do perdedor Blake Masters, seu braço-direito, e as do vitorioso J.D. Vance) e a criação de uma rede de contatos para contrabalançar o que ele chama de “ditadura do politicamente correto” – têm como único propósito ser o poder que freia, o obstáculo, o katechon que o apóstolo Paulo menciona ao falar a respeito da Segunda Epístola de Tessalonicenses, o qual impedirá nada mais, nada menos, que o advento do Anticristo (simbolizado aqui pelas forças opressivas do Estado e as ideologias políticas que negam a importância da violência sagrada no comportamento humano).
A questão é se, até agora, todas essas ações surtiram resultado para a humanidade em geral. Em De Zero a Um, Thiel termina o seu best-seller com um capítulo intitulado O Paradoxo do Fundador, no qual ele explica que o empreendedor bem-sucedido inevitavelmente será expulso pelo próprio sucesso que criou, pois é assim que acontece em todas as sociedades desde Adão e Eva. O estadista (ou o empresário) que agiu corretamente será o bode expiatório das próximas décadas, se guardarmos as devidas proporções, com o povo assassinando a sua reputação, pelo menos em termos metafóricos – mas que também pode ir para as vias de fato, se as instituições não contiverem a loucura do linchamento.
Aconteceu isso com Steve Jobs após a fundação da Apple; ocorreu também com Winston Churchill depois de vencer Hitler; e até com o misterioso Howard Hughes, que ficou louco depois de ter uma carreira esplêndida em Hollywood e na aviação.
Imerso entre essas tensões, Thiel cria o seu próprio impasse: o de construir a sua empresa como se fosse um culto no qual o empreendedor a administra como um monarca absoluto ou a de permitir a liberdade em um meio social em que, se ela não for bem ordenada, culminará numa “grande estagnação”. Este seria o estágio no qual estaríamos vivendo atualmente, segundo suas previsões. Para resolvermos tal enfraquecimento do espírito, precisaríamos nos desprender de visões equivocadas do futuro (as tais “distopias”) e, no aspecto energético e prático, investir nas pesquisas de fissão e fusão nuclear.
De todas as influências que Thiel alega ter recebido na construção de seu pensamento – Schmitt, Strauss e Girard –, parece que ele se esqueceu de uma, essencial para quem lida com o ambíguo assunto da tecnologia: a do americano Henry Adams.
Na autobiografia A Educação de Henry Adams (1918), lemos que o mundo moderno é dominado por duas forças eróticas: a da Virgem e a do Dínamo. A primeira seria a da liberdade interior, a da pessoa que jamais é representada como se fosse uma estatística e sim por meio do seu rosto humano e único; a segunda seria a da técnica impessoal, a do número, a do controle como única maneira de alterar a realidade.
Peter Thiel sabe que deveria adorar a Virgem para impedir a violência sagrada que ele tanto teme, mas no fundo ele idolatra o Dínamo. Ao buscar construir um futuro para todos nós, ele acaba por nos colocar à beira do abismo, onde o desejo de dominar as “coisas ocultas desde a fundação do mundo” se transformará em uma ilusão da qual poucas pessoas conseguirão sobreviver.l
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