'Rei Lear' ganha nova tradução e se prova essencial ao século 21

Tragédia mais turbulenta de Shakespeare retrata a decadência do rei que reparte seu reino entre as filhas e acaba como um mendigo

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Por Jerônimo Teixeira

Na estranha condição de rei sem coroa e sem teto, o velho Lear está perdendo também a razão. Rechaçado pelas filhas em uma noite de tempestade, ele se põe a brigar com os elementos que o fustigam: "Sopra, vento, explode as faces. Bufa e bafeja!”, grita o ancião. "Furacões e cascatas, jorrai até que tenham/ Lavado os campanários e os galos nos pináculos!/ Vós, fogos sulfúricos, prestos como a mente,/ Arautos dos clarões que estraçalham carvalhos, / Queimai minhas cãs!”. O bobo, companheiro de infortúnio, pede que o mestre capitule às exigências humilhantes das filhas para que os dois possam se abrigar da intempérie: "Ai, titio, água-benta cortesã em casa seca vale mais que aguentar essa água toda. Tinho, querido, entra, pede a bênção pra tuas filhas”. No diálogo entre os versos delirantes do rei e a prosa sensata do bobo, chocam-se o sublime e o cômico. Há outros tantos contrastes, rupturas e dissonâncias em Rei Lear, a mais turbulenta das tragédias de William Shakespeare, e esses efeitos foram brilhantemente transpostos para o português na nova edição da peça pela Penguin/Companhia das Letras, de onde saíram os trechos aqui citados. O tradutor é Lawrence Flores Pereira, professor da Universidade Federal de Santa Maria, também responsável pelas extensas e esclarecedoras notas da edição e autor, junto com Kathrin Holzermayr Rosenfield, do prefácio.

Retrato pintado no século 16 do dramaturgo inglês William Shakespeare Foto: Cobbe Collection

O leitor de Shakespeare anda bem servido no Brasil. No final do ano passado, saiu uma vistosa edição de Hamlet, pela Ubu, em nova tradução da poeta Bruna Beber, enriquecida com excertos de textos críticos clássicos assinados por autores como A.C. Bradley, Coleridge e Turguêniev – o escritor russo ensaia uma curiosa comparação entre o príncipe dinamarquês de Shakespeare e o Dom Quixote de Cervantes: Hamlet representaria o “espírito pesado e sombrio” do “homem setentrional"; Quixote, o “espírito luminoso” do “homem meridional”. Mas é da Penguin hoje o esforço editorial mais consistente para atualizar Shakespeare no Brasil, com as notáveis traduções de Flores Pereira (Hamlet, Otelo e agora Rei Lear) e José Francisco Botelho (Romeu e Julieta e Julio César). Rei Lear fez sua estreia em 1606, ano em que um surto da peste encurtou a temporada teatral. Em dezembro daquele ano, foi encenada na corte do rei James I, patrono da companhia de Shakespeare. Supõe-se que James, então empenhado em unificar Inglaterra e Escócia em uma só nação, tenha apreciado o drama do soberano que cai em desgraça porque tomou o caminho inverso: já na primeira cena, Lear divide a ilha entre as filhas Goneril e Renan. Uma terceira parte do reino caberia a Cordélia, a filha mais jovem, se Lear não cometesse o erro trágico que desencadeia todos os seus infortúnios: deserda a caçula quando ela se recusa a declarar amor ao pai em uma cerimônia de lisonja cortesã. Suas irmãs excedem-se na retórica bajulatória, mas Cordélia ama o pai sinceramente, e não quer rebaixar esse sentimento. Quando o rei pergunta o que ela diria para ganhar o “terço mais opulento” da partilha, a resposta é curta e cortante: “Nada, meu senhor”.  "Nada” será uma palavra-chave da peça. Em Rei Lear, diz o crítico A.D. Nuttall, a imaginação de Shakespeare está “enredada pela noção de um nada que é universal e portanto igual para todos”. Lear não esperava ser reduzido a tal insignificância. Ao abdicar do poder, impusera às filhas a única obrigação de lhe dar abrigo e de permitir que conservasse um séquito de cem cavaleiros. Goneril e Renan, no entanto, logo se cansam do hóspede indesejado, e reduzem progressivamente o número de seus seguidores. O bobo faz a conta das perdas de seu amo: "Valho mais que tu agora. Sou um bobo e tu, o zero do nada”. Humilhado e encharcado sob o temporal, Lear afinal percebe que fora insensível à miséria de seus súditos: "Pompa, toma um remédio / Busca sentir o que sentem os desgraçados”. A desgraça de Lear espelha-se no drama paralelo de Gloucester, nobre que, influenciado pelas intrigas do bastardo Edmund – o maior vilão em uma peça pródiga em vilões –, renega seu filho legítimo, Edgar. Perseguido pelo pai, Edgar assume o disfarce de um mendigo doido, o Pobre Tom. Nessa persona, junta-se ao reduzido séquito do antigo rei, ao lado do bobo e do leal Kent. A dicção popular do Pobre Tom é dos feitos mais inventivos da nova tradução.  Lear é um personagem lendário, mas as crônicas históricas do tempo de Shakespeare davam-lhe o estatuto de figura real. Teria sido um rei britânico na Antiguidade pré-cristã – daí os personagens da peça invocarem Júpiter e outros deuses greco-romanos. Na lenda original, Lear não enlouquecia, e nem era acompanhado por um bobo. Esses elementos são criação de Shakespeare. Dramaturgos posteriores fariam mudanças menos felizes na história. Já ao final do século 17, as plateias não aguentavam o final em que Cordélia é assassinada na prisão, a mando de Edmund, e Lear morre ao ver o cadáver da filha. Uma versão sentimental ganharia os palcos, encerrando-se com as felizes bodas de Edgar e Cordélia (personagens que não contracenam na peça de Shakespeare). O século 19 restitui o enredo shakespeariano, e a tragédia alcançou nova proeminência no século 20, um tempo mais afinado, segundo diz o crítico Northrop Frye, aos “sentimentos de alienação e de absurdo”. Pelas mesmas razões, Rei Lear será uma obra essencial para o século 21. 

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