Por que a Rússia continua onipresente nas manchetes americanas, um ano e meio depois de acusada de interferência na campanha eleitoral de 2016? A explicação não está apenas no escritório do temido conselheiro Robert Mueller, que investiga a campanha no Departamento de Justiça. É preciso voltar atrás e sair de Washington para compreender a presidência mais tumultuada desde a era Nixon.
Esqueça, por um momento, a Nova York de 2018. A mais segura metrópole do país, onde personagens da Disney substituíram prostitutas em Times Square; o playground de financistas, advogados, onde apartamentos de US$ 50 milhões são arrematados por empresas cujas fachadas escondem nomes próprios originados em alfabeto cirílico, árabe ou mandarim.
+++Viagem de Joseph Roth à URSS faz pensar que Lenin é precursor de Trump
Volte atrás três décadas e lembre a Nova York que viu nascer a epidemia do crack e os novos ricos personificados por Gordon Gekko, no filme Wall Street; a cidade líder em crimes, então repartida entre cinco famílias da Máfia italiana.
Agora, olhe para a Washington de 2018. Como explicar a presença de tantos personagens da Nova York da década de 1980, a começar pelo presidente, cuja Trump Tower, inaugurada em 1983, foi abrigo e presságio do que estaria por vir? A reprise continua com o bombástico ex-prefeito Rudy Giuliani, reencarnado como advogado pessoal do presidente. Paul Manafort, o ex-chefe da campanha presidencial de 2016, à espera de julgamento por 32 crimes financeiros, e seu antigo sócio, Roger Stone, outra relíquia do passado de truques eleitorais sujos, suspeito de ter colaborado com a Wikileaks no hacking dos e-mails de Hillary Clinton. No lugar dos mafiosos que Giuliani trancafiou, quando era promotor federal, temos um elenco de oligarcas vinculados à Máfia russa circulando abertamente na capital.
+++Livrarias instigam resistência a Trump com ações, não só com palavras
Mas, talvez o personagem cuja volta mais simboliza o presente está no palco da Broadway. Ele é Roy Cohn, vivido pelo ator Nathan Lane na remontagem de Angels in America, de Tony Kushner. Cohn, morto de Aids em 1987, o braço direito do Senador anticomunista Joe McCarthy nos anos 1950, conseguiu se reinventar como advogado em Nova York. Contratado por Fred Trump, pai de Donald, Cohn se tornaria mentor do atual presidente ao longo da década de 1980.
Um livro lançado este mês nos Estados Unidos narra a presença da Rússia na trajetória de Donald Trump. Trump/Russia, a Definitive History começa no limiar da década de 1980, em Nova York, quando o herdeiro criado no bairro de Queens, decidido a conquistar Manhattan, ergueu a Trump Tower na Quinta Avenida. O autor, Seth Hettena, veterano repórter investigativo, nos apresenta a David Bogatin, criminoso que se juntou aos judeus russos que chegaram à cidade nos anos finais da União Soviética e viviam em Brighton Beach, no Brooklyn.
+++Livros de Herman Melville explicam era Trump
Bogatin comandava uma gangue de fraude fiscal em vendas de gasolina e faturava milhões de dólares por semana. Onde lavar esta fortuna? Entra em cena a Trump Tower, na época um dos dois edifícios na cidade que aceitavam compradores anônimos. O prédio logo atraiu estrangeiros, como o ex-ditador haitiano Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, mafiosos italianos, e, em 1989, o futuro presidente da CBF, José Maria Marin, que aguarda na Trump Tower a sentença pelo escândalo da Fifa. Em conversa com o Aliás, Hettena lembra como Bogatin se gabou de ter sido procurado por Trump, que o convenceu a comprar cinco apartamentos na Trump Tower.
“De todas as viagens que Trump fez à Rússia,” diz Hettena, “a mais curiosa é a de 1987, ainda sob o regime soviético.” O empresário foi bajulado pelo então embaixador de Moscou nos EUA, Yuri Dubinin, e convidado pelo Kremlin para uma visita com todas as despesas pagas. “Não fazia sentido”, argumenta Hettena, um regime comunista selecionar o crasso dono de um arranha-céu com banheiro folheado a ouro para uma viagem de forma tão pública. Na volta de Moscou, Trump comprou um anúncio de página inteira no New York Times para denunciar a despesa militar americana com o Japão, em curiosa harmonia com a linha de propaganda do Kremlin sob Gorbachev. No mesmo dia, o Times noticiou que Trump tinha discutido um empreendimento imobiliário em Moscou, plano que nunca se realizou.
De sua casa em Rochester, Nova York, o ‘trumpologista’ David Cay Johnston não se surpreende com a história contada por Seth Hettena. Johnston publicou dois livros sobre Trump e começou, nos anos 1990, examinando com zelo forense a carreira do atual presidente quando ele operava cassinos em Atlantic City e atraiu clientes russos lavando seus ganhos. Ele destaca a cartilha de Roy Cohn para explicar como o atual ocupante da Casa Branca se defende da vasta investigação de Robert Mueller. “Primeiro, ataque a lei, o FBI, vire a mesa, porque isto se torna notícia. Depois, crie confusão, embaralhe fatos, como faz, no momento, Rudy Giuliani, e o público não sabe em quem acreditar.”
Além da emergência do crime organizado russo em Nova York, a década de 1980 marcou uma transferência de guarda na cidade. Até então, a elite milionária tradicional se caracterizava por certo puritanismo e desprezava ostentação. O herdeiro de Queens quebrou o tabu. Ele telefonava para repórteres sob o pseudônimo John Barron para exagerar sua fortuna, suas conquistas sexuais. E esta Nova York do passado conquistou Washington.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.