Com o império mundial das empresas de streaming, a indústria do DVD entrou em declínio e, no Brasil, a mídia foi quase extinta, com o fechamento de produtoras, distribuidoras e lojas. Entre as poucas sobreviventes, a Versátil lidera os lançamentos de qualidade, seguida pela misteriosa OP (Obras-Primas), que agora lança uma caixa com seis filmes remasterizados do incontornável cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982).
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972); O Medo Consome a Alma (1974); O Direito do Mais Forte é a Liberdade (1975) e Eu Só Quero que Vocês me Amem (1976) estão entre os melhores filmes do cineasta; O Soldado Americano (1970) e Deuses da Peste (1970), do começo de sua carreira, não têm o mesmo impacto, mas merecerem uma revisão. Todos já haviam sido lançados em DVD no Brasil (mas esgotados há tempos), com exceção de Eu só quero que vocês me amem, recentemente restaurado. Eu só quero que vocês me amem é um drama exposto com tal violência psicológica que a mesquinharia dos personagens atinge o espectador de maneira quase palpável. Para entender os mecanismos da resignação, Fassbinder buscou suas raízes na primeira instância da integração social: a família, onde se reproduz toda a infelicidade humana. O operário-padrão (Vitus Zeplichal) que se afunda em dívidas tentando agradar a esposa com presentes caros foi surrado na infância pela mãe com um cabide, até que esse se quebrasse, por ter roubado flores para ela. Neste filme cujo título encerra todo o sentido da tragédia, Fassbinder cria uma mãe neurótica ao extremo e se projeta na criança humilhada, revelando os cidadãos de bem como verdadeiros monstros: é este o seu filme mais profundamente pessoal. Como um duende enfurecido, Fassbinder procurava salvar-se fazendo de sua vida sua arte e de sua arte sua vida: relacionando-se com os agregados de seu Aktion-Theater (Teatro da Ação), profissional e emocionalmente dependentes de si, escreveu e montou dezenas de peças (nas quais também atuava), foi ator em 30 filmes de outros diretores, escreveu e dirigiu 44 filmes e três séries de TV em apenas 15 anos de carreira, deixando o mundo com a idade de 37. Nenhum cineasta produziu mais, com a mesma qualidade, nesse espaço de tempo: “Tenho mais energia que qualquer bomba”, disse Fassbinder com razão. Em sua vida breve, Fassbinder experimentou todas as formas do relacionamento humano: teve amantes solteiros e casados, viveu em comunidade, casou-se duas vezes com mulheres. De modo surpreendente, a relação de Fassbinder mais improvável de dar certo, seu segundo casamento (o primeiro, com Ingrid Caven, foi conturbado e durou pouco), com Juliane Lorenz, a editora de seus últimos filmes, foi um bilhete premiado para ambos. Lorenz explicou que havia fases em que Fassbinder vivia como homossexual e outras como bissexual, mas que preferia dormir com homens. Seu casamento com ele pode não ter sido espetacular na cama, mas foi fundamental para a posteridade do cineasta: dotada de energia impressionante e decidida a preservar a obra do parceiro, Lorenz foi para o futuro de Fassbinder o que Laura Betti foi para o de Pasolini: sem a dedicação dessas duas mulheres apaixonadas, os filmes desses gênios caóticos poderiam ter desaparecido para sempre. Após a morte de Fassbinder em 1982, todos os direitos autorais de suas obras foram herdados pelos seus pais: a tradutora e atriz Liselotte “Lilo” Pempeit (1922-1993) e o médico Helmuth Fassbinder (1918-2010), separados desde 1951, tendo Lilo se casado em 1959 com o jornalista Wolff Eder. Em 1986, Liselotte (agora Eder) criou a Fundação Rainer Werner Fassbinder, para a qual Helmuth abriu mão de seus direitos sobre a obra do filho em troca de uma compensação. Em 1991, Liselotte escolheu Lorenz para presidir a Fundação. E, em 1993, Lorenz herdou legalmente o patrimônio de Fassbinder. Agora livre para agir, ela dirigiu o documentário Life, Love & Celluloid (1998), escreveu livros e catálogos sobre Fassbinder, e começou a restaurar seus filmes. A série Berlin Alexanderplatz (1980), de 15 horas e meia de duração, repudiada pelo telespectador alemão pela trama demasiado sombria agravada por uma fotografia excessivamente escura, foi exibida em festivais de cinema, lançada em salas comerciais e exibida em algumas emissoras de TV (PBS, Bravo) em 1983, e acabou conquistando a crítica internacional. Comentando a série Andrew Sarris chamou Fassbinder de “o Monte Everest do cinema moderno”. Susan Sontag dedicou-lhe um ensaio. Mas depois de exaltado pela crítica, Berlin Alexanderplatz caiu no esquecimento até que, em 2006, com o apoio do Goethe-Institut, Lorenz e o cinegrafista da série Xavier Schwarzenberger restauraram digitalmente o negativo original em 16mm, em péssimo estado, e o transferiram para 35mm. Berlin Alexanderplatz: Remasterizado estreou no Festival de Berlim em 2007 e foi lançado mundialmente em DVD. Outra série de TV de Fassbinder foi Welt am Draht (O mundo por um fio, 1973), com apenas dois episódios totalizando três horas e meia. Nesta sua única incursão na ficção científica (com trama de policial noir), Fassbinder evocava a fracassada tentativa de futurismo de Alphaville, de Godard, para superá-la com seu estilo decadentista de rostos refletidos em superfícies espelhadas, luzes em forma de cristais, jogos mórbidos de aparências. Produzindo realidades alternativas, o megacomputador Simulacron de O mundo por um fio faz pessoas e memórias desaparecerem como se nunca tivessem existido, numa inteligente metáfora do Revisionismo, que cancela pessoas, relativiza tragédias e nega fatos históricos. A fascinante série, cuja força não está nos efeitos especiais, mas nas interpretações e no jogo de câmera de Michael Ballhaus, foi um fracasso comercial e também desapareceu da História do Cinema, até ser restaurada e lançada por Lorenz em 2010 no Festival de Berlim, com exibições em festivais internacionais e edições mundiais em DVD e Bluray. Das três séries realizadas por Fassbinder e restauradas por Lorenz, a melhor, a meu ver, é Acht Stunden sind kein Tag (Oito horas não são um dia, 1972), produzida pela Westdeutscher Rundfunk (WDR), de Colônia. Graças a diversos apoios institucionais, ela ganhou uma restauração espetacular e foi lançada em 2016 no Festival de Berlim, com edições em DVD e Blu-ray nos EUA e Europa. Oito horas não fazem um dia é uma dessas maravilhas que, depois de silenciadas pelo tempo, ganham nova vida por milagre. Sua própria existência foi improvável e controversa: os três últimos episódios tiveram a produção vetada, de modo que a série de oito episódios terminou no quinto, sem ser concluída como fora escrita. Os cinco episódios produzidos somam 8 horas de duração, coincidindo com o título que alude às 8 horas da jornada de trabalho. Trata-se de um drama de família, mas não dos burgueses e seus problemas que as TVs sempre apresentam, com os empregados em papéis marginais. Os protagonistas desta série são operários de uma fábrica de ferramentas industriais da cidade de Colônia. O universo limitado deles descortina-se nas relações de amor e de amizade do “núcleo operário” que abriga tipos diversos: Jochen (Gottfried John), jovem líder nato e fio condutor das tramas; Giuseppe (Grigorios Karipidis), imigrante italiano com boas ideias; o trabalhador negro (El Hedi ben Salem), que evita falar; Rüdiger (Herb Andress), um operário racista; Franz (Wolfgang Schenck), chefe inseguro que estuda matemática para manter seu posto; Wolf (Wolfried Lier), pai de Jochen, aposentado histérico, casado com a lúcida, mas conformada Käthe (Anita Bucher). Nesse meio, as mulheres se destacam pela força. Embora todas sofram o machismo, e no caso de Monika (Renate Roland), casada com o pequeno-burguês Harald (Kurt Raab), até o extremo da aniquilação, a Oma / Vovó (Luise Ullrich) domina o marido submisso Gregor (Werner Finck) enquanto a jovem Marion (Hanna Schygulla), namorada de Jochen, é sua igual: estas duas mulheres inteligentes sabem conduzir seus homens até um porto seguro. A série abre com uma aflitiva festa de aniversário, atingindo em poucos segundos o ápice do horror. Como nessa sequência cruel, os sentimentos dos personagens revelam-se através de rituais pobres: as apressadas refeições em família que terminam em brigas explosivas, os encontros catastróficos dos casais numa boate, as reuniões tensas dos trabalhadores na fábrica. O relaxamento só ocorre nos banhos coletivos, ocasião para Fassbinder quebrar o tabu do nu masculino na TV. Os embates se dão entre os maridos e suas esposas, entre os pais e seus filhos, entre os colegas de trabalho, entre os operários e suas parceiras, entre os patrões e os empregados. Os preconceitos de alguns se manifestam de forma sutil – a funcionária Irmgard Erlkïnig (Irm Hermann) demonstrando sentir-se superior aos operários; ou violenta – o operário racista atacando os colegas imigrantes. Contudo, os personagens principais são amorosos e humanos como raramente o são nos filmes de Fassbinder: torcemos por eles, queremos que se deem bem, que consigam realizar seus pequenos sonhos, pelos quais lutam com tanta dificuldade, mas também com inteligência e tenacidade. Porém, mesmo quando os operários são vitoriosos em suas reivindicações por meio dos protestos organizados contra os chefes, percebe-se que todos estão submetidos a forças superiores, que permanecem ocultas. A luta de classes ganha um tom sombrio, realçado pela ótima trilha sonora de filme de ficção científica composta por Jean Gepoint (Fuzzy) e dos rápidos zooms nos rostos assustados dos personagens, sugerindo que o novo capitalismo transcende aquele das fábricas descrito por Marx, integrando os operários a um sistema mundial infinitamente mais complexo. Por esse pessimismo, expresso a certa altura pela personagem de Hanna Schygulla, que percebe que os operários nunca ganharão o jogo, a série de Fassbinder foi criticada pelos comunistas alemães, que a viram como uma expressão de conformismo burguês. Na verdade, a visão de Fassbinder conecta-se à da Nova Esquerda, à teoria crítica de Herbert Marcuse, que previu ainda nos anos de 1950 a integração do proletariado ao capitalismo. Os operários de Fassbinder afogam suas mágoas em litros de álcool numa boate que só toca música americana. A trilha pop inclui After the Gold Rush, de Neil Young, e Me and Bobby McGee na versão de Janis Joplin. Eles ainda agem de forma solidária e comunitária, mas seus valores já são os da pequena-burguesia, com a qual se misturam e se confundem. Os principais agregados de Fassbinder estão todos aqui: Hanna Schygulla, Gottfried John, Irm Hermann, Kurt Raab, Margit Carstensen, Ulli Lommel, Eva Mattes, El Hedi ben Salem, Brigitte Mira, Klaus Löwitsch, Peer Raben, até sua mãe Lilo Pempeit. Mas são dois veteranos atores do cinema alemão, a vienense Louise Ullrich (1910-1985) e Werner Finck (1902-1978), que dão um show de interpretação como um casal de idosos românticos e astutos, cômicos e absurdos, excêntricos e impagáveis, que enfrentam a burocracia para abrir uma creche estatal com o objetivo altruísta de tirar as crianças da rua, que no fundo esconde outro, mais importante, de conseguir um salário de monitores para complementar suas baixas rendas e poder, assim, alugar um apartamento. Oito horas não fazem um dia permanece inédita no Brasil: quem sabe a Versátil ou a OP não se animam a lançá-la entre nós? Poderiam incluir como bônus no mesmo box o telefilme de Fassbinder que poucos cinéfilos conhecem, de apenas uma hora, Angst vor der Angst (O medo do medo, 1975), com a inefável Margit Carstensen sofrendo ataques de pânico que não configuram uma síndrome, mas antes uma reação de repulsa inconsciente à sua própria existência infeliz. O filme foi lançado em DVD apenas na França e na Alemanha pelo selo ARTE. Finalmente, temos a restauração de Baal (Baal, 1969), de Volker Schlöndorff, estrelado por um jovem Fassbinder, e produzido pela TV alemã a partir da primeira peça, ainda marcada pelo expressionismo, de Bertolt Brecht, desaprovada pelos críticos comunistas, que defendiam a estética do realismo socialista. Após a estreia na TV, o filme foi retirado de circulação pela viúva de Brecht, a famosa atriz Helena Weigel, que o considerou “uma merda”. Para ela, sempre comunista, o Baal de Fassbinder nada tinha a ver com o Baal de Brecht. Desde então, o filme desapareceu e nem mesmo Schlöndorff sabia onde ele estava. O negativo em 16mm foi encontrado dentro de latas enferrujadas e sem título, marcadas apenas com a letra S. Mas somente em 2011 a neta de Brecht permitiu que Baal fosse exibido. O filme foi cuidadosamente restaurado por Lorenz e relançado em 2014. Em 2018 saiu em DVD pela Criterion. Primeiro filme colorido rodado pelo cinegrafista Dietrich Lohmann, Baal tem uma fotografia suja, mas com alguns interiores bem coloridos para evocar a pop-art. O filme atualiza a peça de 1919 com o poeta maldito interpretado por Fassbinder praticando seus deboches e orgias no mundo de 1969. Primeira escolha para o papel da ingênua seduzida Sophie, a atriz Margarethe von Trotta acabou se casando com o diretor. Fassbinder foi escolhido por Schlöndorff depois que o viu atuar em seu Aktion-Theater: ele era o próprio Baal. E como a trupe de Fassbinder dependia dele para sobreviver, ele só aceitou o papel com a condição de levar para o filme o maior número de seus agregados. Baal satiriza o culto do gênio, mostrando o anárquico poeta Baal, que se coloca “acima da moral burguesa”, como um neurótico que atrai e destrói as mulheres num frenesi de sexo e violência. Mas o sedutor acaba se apaixonando por um homem, e essa paixão o leva à morte. Baal é o mais fassbinderiano dos filmes de Schlöndorff. Após ver restaurado, como por milagre, seu filme quase perdido para sempre, Schlöndorff orgulhou-se de ter “eternizado” na película a figura do jovem Fassbinder, que encarnava à perfeição o personagem de Brecht, como se o dramaturgo tivesse visto o futuro e se inspirado na existência caótica de Fassbinder para criar Baal.*LUIZ NAZARIO É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA DO CINEMA NA UFMG E AUTOR DE ‘O CINEMA ERRANTE’ (PERSPECTIVA)
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