Houve um tempo em que os sábios judeus eram simultaneamente filósofos, poetas, satíricos, médicos, ministros de governo, generais. Havia também aqueles dotados de forte tendência à aventura por áreas próximas e distantes, entre as quais se destaca, obviamente, a nostálgica Terra de Israel, emblema da redenção do exílio. Foi ao redor de mil anos atrás, quando a grande maioria dos israelitas vivia no mundo dominado pelos maometanos, o que incluía Al Andalus, na Ibéria. Mesmo em pontos reconquistados pelos cristãos a influência árabe permaneceria presente, inclusive no aspecto idiomático – a língua do Islã era a língua da cultura, e a literatura hebraica também adotava a expressão laica na poesia, paralelamente às obras sinagogais. A lista dos grandes nomes entre os judeus é extensa, mas podemos lembrar Shemuel haNaguid (o Príncipe), Moshê ibn Ezra, Yehudá haLevi, para ficarmos em três dos mais conhecidos poetas, conhecedores das Escrituras, da lei judaica (Halachá-Talmud: conheça mais sobre o Talmud no 'Estado da Arte'), do árabe, etc. Desse etc. fazem parte também aqueles que se arriscavam em outras viagens, isto é, aquém das incursões profundas pelo mundo da mística, a Cabala que se desenvolveria naquela época.
O rabi Benjamin de Tudela, nascido no reino de Navarra (na parte cristã) ao redor de 1130, morto em 1173, incluiu na sua vontade de conhecimento as viagens terra a terra, registradas em hebraico, nesse Itinerário, livro que se tornaria clássico no gênero, escrito cem anos antes do relato de Marco Polo. O mundo de Benjamin era peculiar, pensando-se em termos ocidentais: a influência do chamado Levante, a partir da conquista islâmica, abrangia desde pedaços da Ásia e Norte da África até o Sul da Europa. Ao que tudo indica ele também foi mercador e traçou a longa viagem pelo Oriente Médio, África e enfim Europa, no retorno ao seu país. Uma geografia que sofreria muitas e dramáticas modificações, e que ele nos permite conhecer por meio dos seus olhos e da sensibilidade do seu tempo mais a sua condição de judeu natural da Espanha, centro cosmopolita e multilíngue – a dualidade é constante e fértil.
O Itinerário, um grande exemplo do cosmopolitismo judaico da época, é finalmente traduzido por J. Guinsburg, idealizador e editor da coleção Judaica (Perspectiva), à qual não limitou a atividade intelectual e editorial. O tradutor, ficcionista, ensaísta, critico, professor, além de editor, conseguiu também construir uma obra bibliográfica universitária merecedora de figurar entre importantes empreendimentos, inclusive internacionais. O Itinerário contém aparato à altura das exigências de um texto pioneiro e iluminador como esse: introdução erudita, notas e ilustrações que servem de contraponto ao texto e “guiam” o leitor pelo universo concreto e às vezes nem tanto do rabi Benjamin, que desenha um mapa ao mesmo tempo particular e de interesse histórico, geográfico, etnográfico. Sem contar o aspecto linguístico do hebraico que se recriava nos vários gêneros da expressão escrita mencionados acima.
Deve-se atentar ao jogo no qual o Itinerário foi vivido e escrito. As notas e observações objetivas do rabi Benjamin são, digamos, tanto “concretas”, voltadas para o que se chama realidade externa, como refletem as ideias e as emoções do autor, norteado pela curiosidade e pelo fascínio diante das mil e uma noites e dias abertos diante dele. Universo do qual ele fazia parte, pelo sentimento de pertença e herança cultural, e, no entanto, desconhecia até a partida em busca do entendimento de um europeu que levava em si a síntese de Oriente e Ocidente. O que ele descreve, mesmo quando se reduz a números e breves informações, decorre das suas preocupações como judeu: ele fornece notícias – para todos os tempos – da vida naquelas regiões, destacando-se as estatísticas a respeito das populações judaicas e resumos sobre os diferentes modos de existência de cada uma delas, assim como dos outros protagonistas daqueles cenários. Mesmo os números não são reduzidos, portanto, à frieza das meras cifras, eles são uma espécie de projeção da subjetividade exilada do judeu medievo e que se abre para o universal.
A escrita é seca, se quisermos uma comparação anacrônica, ou premonitória, diremos que se aproxima do tom jornalístico, ao qual, porém, não faltam as narrativas fantásticas e as informações indiretas, em que a imaginação acrescenta-se como vontade de saber e não só dele, o viajante escritor, mas também do leitor de sua época e desta atualidade – todos com suas respectivas limitações, obviamente. Deve-se lembrar que registros feitos pelo rabi Benjamin são confirmados por outras fontes, tornando-se dessa maneira dados relevantes do ponto de vista histórico. O Itinerário não é apenas um simples relato, como disse, há momentos mágicos em que o “mero” registro adquire vibrações fantásticas e há elementos fantásticos que se incorporam à história, pelo imaginário, formando um conjunto único e fascinante.
*Moacir Amâncio é professor de literatura hebraica na USP e autor de 'Matula' (poemas, Annablume), 'Ata' (idem, Record), 'Yona e o Andrógino - Notas Sobre Poesia e Cabala' (Nankin/Edusp), entre outros livros