Bibiana e Belonísia são irmãs, filhas de lavradores, descendentes de índios e negros escravizados que, mesmo muito depois da abolição, continuam vivendo sob regime de servidão numa fazenda do interior da Bahia.
Ainda na infância, sofrem um trauma que para sempre vai ligá-las e lançá-las numa história de luta contra uma realidade que se perpetua, sob diferentes formas, desde a colonização.
Este é apenas o centro da trama de Torto arado, romance de Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio LeYa 2018 em Portugal e agora publicado no Brasil pela editora Todavia.
Nascido em Salvador no ano de 1979, Itamar é geógrafo, doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor de Dias e A oração do carrasco (finalista do Prêmio Jabuti 2017 na categoria contos).
Na conversa abaixo, ele fala de seu livro, de uma literatura que espelhe nossa diversidade e de uma insubordinação que nos desperte do passado escravista.
Torto arado foi premiado e publicado em Portugal antes de retornar ao Brasil. Como você interpreta essa trajetória peculiar? O que ela nos diz sobre as relações históricas entre os dois países?
De fato, o romance fez uma trajetória inesperada. Enquanto escrevia a última versão, eu estava tocado pela vontade de escrever aos brasileiros, de contar-lhes algo que me parecia escondido aos olhos da maioria. Como não tinha estabelecido contato com qualquer editora, resolvi submeter ao Prêmio LeYa, sem nenhuma esperança de que uma história tão brasileira, e com um forte toque regionalista, fosse interessar a um júri majoritariamente português.
Para a minha surpresa, a obra foi vencedora e acabou publicada primeiro em Portugal. Fiquei imensamente aflito para saber como seria acolhida pelo público, especialmente. E, mais uma vez, para a minha surpresa, encontrei um país acolhedor, que não se furta a tocar no trauma de seu passado colonizador - um paradoxo, porque nós, os "colonizados", continuamos a agir, entre nós, como os "colonizadores" do passado. Há um grande interesse dos portugueses pelas obras que refletem o olhar daqueles que foram vítimas desse sistema.
Penso que o interesse, aqui e lá, deve-se à percepção de que não há muitas histórias sobre o período pós-abolição. O que ocorreu com os escravizados e libertos depois de 1888? Os que viviam cativos nos latifúndios foram para onde? Ganharam autonomia, foram acolhidos pela sociedade? O Brasil realizou uma reforma agrária que desse uma possibilidade de vida digna às pessoas?
O propósito do romance era contar como o sistema escravagista se perpetuou em outras formas de exploração que persistem até os nossos dias. De norte a sul do país, há inúmeros trabalhadores que são vítimas da exploração, que têm seus direitos humanos elementares, como o direito ao território, negados. Percebo que quem lê o livro tem se identificado com o incômodo que me moveu a escrevê-lo.
Você é geógrafo, trabalha no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e defendeu uma tese de doutorado em estudos étnicos e africanos na UFBA. De que maneira seus estudos acadêmicos e trabalhos de campo conversam com sua literatura? Como se dá essa passagem do real para a ficção - e da ficção para o real?
Penso que toda a minha formação acadêmica - entre a geografia, a antropologia e os estudos étnicos - deu-me uma visão de mundo humanista e ajudou a formar o escritor, que antes de tudo é o homem interessado em exercer a sua cidadania.
Torto arado é uma ficção inspirada na realidade. As personagens são ficcionais. Bibiana e Belonísia, por exemplo, são personagens que existem apenas nas páginas do romance, assim como a história da língua, a mudez, os homens que contornaram suas vidas e os crimes que se sucedem na narrativa.
Mas a minha vida e a das personagens foram atravessadas, inevitavelmente, pelas vidas e histórias que encontrei em meu caminho. Assim, é impossível separar realidade de ficção.
Enquanto escrevia a minha tese de doutorado - uma etnografia sobre um agrupamento quilombola - pensei sobre como a linguagem acadêmica é circunscrita a um público específico. Pensei também sobre como a linguagem literária, ficcional, nos permite simular um universo muito próximo de nós, quase pessoal.
A literatura é essa magia que nos permite trocar de vidas, uma espécie de contrato que estabelecemos com os personagens e o autor para viver aquelas vidas por um tempo, em nosso interior. Uma forma poderosa de se criar empatia, sem julgamentos.
Numa tese é necessário um compromisso com a verdade factual. Na ficção, não. Estudos acadêmicos e ficção literária são narrativas distintas, com propósitos distantes, mas podem eventualmente se tocar, como ocorreu comigo. Tudo o que pesquisei sobre a natureza, as práticas rituais do jarê e as relações de trabalho, de alguma forma contribuiu para enriquecer o universo literário do romance. Essa foi a minha experiência.
Isso aumenta a curiosidade sobre a história da própria escrita de Torto arado...
A escrita de Torto arado se impôs a mim muito cedo, sob o impacto da leitura dos grandes romances "regionalistas" brasileiros: Vidas secas, Grande sertão: veredas, Menino de engenho, O quinze, Terras do sem-fim e Morte e vida severina.
Cheguei a escrever oitenta páginas na máquina Olivetti Lettera 82, portátil, que ganhei de presente do meu pai, mas não tinha maturidade para prosseguir. Só muitos anos depois, quando fui trabalhar no campo, eu voltei a planejar a escrita dessa história. Já vivia o necessário para escrever o que deveria ser escrito.
Passados vinte anos, depois de muitas leituras e um estudo intenso e apaixonado da literatura, acho que aprendi um pouquinho do fazer literário, o que mudou sobremaneira o meu processo criativo. Mas não costumo reler o livro, no máximo posso ler um capítulo, ou três trechos escolhidos, para uma sessão pública.
Acho que todo escritor sofre do mal da edição e da reescrita, reescrevemos infinitamente porque sempre achamos que se pode melhorar um texto. Por isso evito reler, a não ser quando meus editores me pedem, aí obedeço.
Um dos pontos fortes do livro é o cuidado com a linguagem. Cuidado não apenas estético, mas também ético, o que nos leva à questão do lugar de fala e da representação do outro na literatura...
Eu queria um texto literário que refletisse a vida das personagens que narram a história. São mulheres simples, embora alfabetizadas e com hábito de leitura.
Ao mesmo tempo, o mais importante era que o texto encontrasse a possibilidade de alcançar o público. Isto só seria possível se não fosse uma obra hermética, encerrada em uma tentativa de recriar uma linguagem que não era a minha, muito menos a do leitor.
O que permaneceu do universo retratado no romance? Passei muitas horas conversando e transcrevendo conversas para a minha tese. Em dado momento, estava imerso no ritmo, na musicalidade dos falares. Quando resolvi retomar a escrita já havia feito uma opção estética para narrar a história. Para narrar Torto arado eu precisaria reproduzir aquela cadência que me enfeitiçou.
Acho importante a discussão sobre o lugar de fala. É necessária, principalmente quando clamamos a necessidade das representações. Vivemos em um país com grande diversidade étnica e todos precisam ter suas vozes ouvidas e reproduzidas.
Mas creio também que a literatura - e qualquer expressão artística - é o espaço da liberdade, e dela não devemos abrir mão. Torto arado é uma obra artística e, embora a vejam dessa forma, não é a sua intenção dar voz ao excluídos. O autor não escreve por ninguém, escreve para alguém. Isto eu aprendi com a escritora Toni Morrison.
Nesse percurso de escrita também havia uma intenção de me reconectar com o meu passado, com meus ancestrais, com as histórias perdidas da família. Embora eu pertença a uma classe média que vive em uma situação privilegiada se comparada às personagens do romance, não me esqueço do que meus ancestrais passaram para que eu estivesse aqui, nesta posição. Houve dor e lamento, sequestro e escravidão, violências absurdas que reverberam em minha existência, marcaram meu corpo, meu DNA. Contar essa história era uma forma de entender a minha própria vida e a de meus irmãos, que continuam a perecer no campo e nas periferias das cidades.
Diferente de certa tendência da produção literária contemporânea, Torto arado parece propor uma espécie de retorno ao romance que se afirma capaz de simplesmente narrar, de fabular um mundo ficcional sem maiores metanarrações, autorreflexões, autoficções...
Se você quis ler um livro e não o encontrou, escreva-o. Acho que Toni Morrison nos disse algo assim. Quando olho para o Brasil, eu penso: sobre o que versa a nossa literatura contemporânea? Qual classe social pode se dar ao luxo de escrever? Qual universo costuma retratar? A nossa literatura não espelha a diversidade de nossa sociedade. Há pesquisas acadêmicas sobre o tema, como a coordenada por Regina Dalcastagnè, na Universidade de Brasília.
Quando penso na essência dos livros da minha vida - que são muitos - constato que Torto arado é tributário de muitos. A narrativa reflete as minhas escolhas estéticas, que foram aprendidas com os escritores que me formaram.
Vejo muitos escritores apegados à forma, utilizando paralelismos sintáticos ou inversões semânticas e chamando tudo isso de "voz". A forma não deve condicionar a narrativa, pelo contrário, é a narrativa que nos conduz à forma. Esta é a minha visão sobre a arte da escrita, mas há espaço para as diferenças.
Outra coisa que costuma me aborrecer sobremaneira é a autoficção, a incapacidade do escritor de sair do entorno do seu próprio umbigo. Se tivesse que fazer ficção sobre a minha própria vida, eu não escreveria uma linha, porque minha vida me parece desinteressante. E se todos fizessem autoficção não teríamos alguns monumentos da literatura universal como Crime e castigo, Madame Bovary ou Grande sertão: veredas.
Seu romance fala de um Brasil profundo e quase esquecido que, como um arado torto, parece antiquíssimo, estagnado, anacrônico. Ao mesmo tempo, fala da extraordinária fecundidade da terra, de seu povo, de seus modos de viver e acreditar. Agora, enquanto o fogo queima a Amazônia, seu livro ganha ainda mais em profundidade e urgência.
Enquanto escrevia Torto arado, recebi, num espaço de dois meses, notícias que davam conta de oito assassinatos de camponeses na Bahia, em localidades onde eu já havia trabalhado. Dois destes eram de lideranças, sendo que uma eu conhecia pessoalmente. Havíamos nos sentado à mesa e compartilhado momentos de trabalho de campo.
Era o Brasil, ano de 2017: a violência grassava novamente. Ano após ano, lideranças do movimento civil - ambientalistas, indígenas, trabalhadores sem-terra e quilombolas - continuam a morrer pelo direito à terra, à floresta, à vida. Quando recebi o anúncio do Prêmio LeYa faltavam apenas doze dias para o segundo turno das eleições. Foi inevitável pensar sobre o que estava por vir caso Jair Bolsonaro vencesse. A prova está aí: estamos pagando por este erro com fogo.
Grande parte da nossa desigualdade, da nossa tragédia social, deve-se à nossa perversa estrutura fundiária, que há muito tempo expulsa a população do campo. A tragédia que vivemos na Amazônia é resultado de tudo isso. Quem está por trás do "dia do fogo" e das queimadas que alarmaram o mundo? São os mesmos ruralistas que mataram e matam os que reclamam por direitos: de Chico Mendes a Dorothy Stang, de Zumbi dos Palmares a Margarida Alves. São os mesmos que dominam o Congresso Nacional e continuam a semear uma política de destruição contra todos nós.
A insubordinação social sempre foi o caminho: "Sobre a terra há de viver sempre o mais forte". Não fosse a insubordinação de nossos antepassados já estaríamos exterminados. Não haveria Amazônia, não haveria camponês, nem mesmo alimento na nossa mesa. Não haveria rios nem ar respirável. A insubordinação só existe porque há amor à natureza, à nossa própria vida.
Ao longo de treze anos trabalhando entre camponeses, entendi suas vidas - de muito esforço, grande violência e pouca recompensa - como uma declaração de amor à terra. Foi a declaração que quis compartilhar escrevendo essa história, mas não sei se consegui. O tempo e os leitores me dirão.
É difícil dizer se seu romance é histórico ou lírico, realista ou mágico, contemporâneo ou imemorial. Isso é sinal de que, para narrar o Brasil, na ficção e na não-ficção, é preciso ultrapassar as fronteiras entre os gêneros, aglutinar as formas, acolher as diferenças, abranger tudo o que há de diverso nas nossas muitas realidades?
Enquanto escrevia não refletia sobre nada disso, não de forma intencional. Mas sua constatação me fez pensar na última narradora do romance, uma personagem que atravessou os séculos e que tem uma visão muito mais ampla da história, mais ampla do que a de Belonísia e Bibiana, ou a minha e a sua.
Elas não percebiam a exploração até serem confrontadas com a violência e conhecerem os movimentos sindicais, a luta dos outros. A última narradora só poderia existir como uma personagem literária, jamais um texto de não-ficção poderia trazê-la como uma voz, a voz longeva da história de um povo. Mas a literatura nos permite fabular.
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