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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | Eleição dos EUA parece comédia de Mel Brooks e paródia das nossas caseiras crises políticas

Hoje, os presidentes não têm coroas ou espadas, mas podem apertar botões com o potencial de acabar o mundo

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Atualização:

Toda mudança de papéis e de espaço social é uma “passagem” e exige uma ritualização confirmadora. Arnold Van Gennep, que estudou e cunhou essa dinâmica ritual num livro clássico (Os Ritos de Passagem, publicado em 1909 e introduzido no Brasil em 2013, com minha apresentação), dizia que todas as passagens implicam separação, marginalidade e integração.

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Dessas três fases a mais perigosa é a intermediária. Fase na qual o grupo ou pessoa não está onde estava, mas ainda não se encontra onde deveria estar. Rituais de sucessão como eleições periódicas, essa marca da democracia, exibem tais momentos e, na campanha eleitoral, essa etapa intermediária surge em todo o seu potencial dramático.

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Não é por acaso que a consagração de reis e papas é repleta de vestes, adornos e gestos transcendentes. Vale lembrar que no caso moderno do Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, a chave do supremo Poder Executivo era um código que permitia iniciar ou terminar uma guerra nuclear capaz de destruir o planeta. Hoje, os presidentes não têm coroas ou espadas, mas podem apertar botões com o potencial de acabar o mundo.

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A eleição presidencial americana vive um momento delicado. Há um ex-presidente candidato claramente antidemocrático, que escapou de chocante tentativa de assassinato. Há o presidente em exercício que retirou sua candidatura, mas vai continuar no cargo durante a eleição. E, para completar o nevoeiro, a disputa presidencial tem como candidata uma mulher negra ex-vice-presidente do atual chefe da nação. Parece comédia de Mel Brooks e uma paródia das nossas caseiras crises políticas.

A eleição presidencial americana vive um momento delicado. Há um ex-presidente candidato claramente antidemocrático, que escapou de chocante tentativa de assassinato. Há o presidente em exercício que retirou sua candidatura, mas vai continuar no cargo durante a eleição (foto). Foto: Evan Vucci/AP

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Os iluministas desenharam a República com poderes interdependentes e um sistema sucessório destituído da parafernália sacrossanta. Mas não posso deixar de assinalar que, nos ritos de inauguração presidencial dos EUA, há um juramento formal em cima da Bíblia. Um gesto que testemunha o compromisso de observar os valores de um outro livro que é o espírito dos Estados nacionais modernos: a Constituição que governa governos. Um antropólogo perguntaria qual o livro mais sagrado?

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Nos EUA há a tradição de assassinar presidentes. Na América Central e do Sul, há o risco dos “golpes” que dissolvem a tripartição dos poderes e instauram um executivo absoluto. Ao lado disso, há a competição por ideologias que deteriam o segredo da felicidade.

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Tudo isso mostra como, em matéria de vida coletiva, precisamos de instituições perenes e de gestos altruísticos em nome de uma terra que tem língua e estilo de vida inscritos nos nossos corações. Terra que é mais do que terra: é pátria. Foi precisamente o que vi e admirei emocionado quando Joe Biden renunciou à sua candidatura, honrando uma modelar e pioneira democracia.

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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