Desde que a espécie humana despontou no planeta, pela primeira vez deixamos de conceber a natureza como o “mundo” e uma constante. Suas transformações previsíveis e regulares - dia e noite, verão e inverno, chuva e sol, florescer e fenecer - confirmavam periodicidade e solidez na sua perenidade como um palco no qual encenávamos os mais variados dramas e se abrigava uma extraordinária diversidade cultural. Essa natureza tem sofrido drásticas transformações.
Se a natureza foi jardim do Éden, paraíso terrestre e, logo depois, um vale de lágrimas que hoje agride as nossas sensibilidades, somos forçados a constatar como a “nossa cultura” tem afetado esse solo chamado de “natureza” - dimensão sinônima de realidade e eternidade. Essa Mãe-Terra duradoura que nos consumiria, pois a ela voltávamos, reafirmando a aliança do “enterramento” no retorno pacífico das finitudes.
Esse paraíso, e vale de lágrimas, está em processo de mudança e extinção, como alguns pesquisadores e a mudança climática têm nos alertado. Não por vontade divina, mas porque o nosso estilo de vida progressista e cumulativo nos obriga a ir além de Shakespeare (“o mundo é um palco”) para transformá-lo num mero fornecedor de matérias-primas que ainda supomos inesgotáveis.
Somente agora é que temos começado a encarar a natureza como uma realidade relativa, capaz de, como as sociedades, esgotar-se devido a sua exploração em escala jamais realizada pelo nosso canibal estilo de vida
Nossa transcendente obsessão tecnocrática tem sido básica para o bem-viver, tornando normal e aceitável o homicídio do planeta. As medidas de comparação entre povos se reduziram a um único critério: o econômico. Hoje, a exótica selvageria atribuída aos selvagens obriga a inverter os tradicionais esquemas de evolução. Neles, o começo era a selvageria e o fim, a civilização. Hoje, a barbárie e o perigo de liquidar nuclearmente a Mãe-Terra rondam nossas disputas em nome de Deus e das etnias mutuamente aterrorizadas. Conseguimos o notável feito de criar povos milionários e países miseráveis. Tudo isso com a bênção dos deuses das finanças e dos seus sacerdotes. A isso juntamos os imorredouros e velhos etnocentrismos e cronocentrismos, que levam a guerras nas quais tudo o que orgulhosamente construímos vira o pó de um inexprimível sofrimento.
Chegamos ao ponto final da oposição primordial entre natureza e cultura? Ou alcançamos o perturbador “nem natureza nem cultura”, uma relativização na qual Eduardo Viveiros de Castro e seus colaboradores foram pioneiros, com Marilyn Strathern, em apontar; ou entramos numa nova etapa de nossa humanidade e com isso iremos modificar nossos pressupostos cosmológicos e adotar um fundamental “com natureza na cultura”, tal como sabem os chamados povos primitivos?
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