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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | Conflito de interesse: quando a ética pessoal encontra a justiça impessoal

O caminho mais difícil é o correto porque exigiu do herói o sacrifício de pensar menos em si e mais na integridade da sociedade

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Foto do author Roberto DaMatta

Um teórico ambicioso, como meu amigo Richard Moneygrand, diria que a expressão exprime o persistente dilema que as democracias explicitam. O paradoxo de seguir a lei e não atender os companheiros, sendo fiel a um universalismo sem cara ou coroa. Aliás, acentuaria, no caso brasileiro o conflito é de raiz porque a vinda da corte portuguesa para o Brasil inverteu carnavalescamente o elo entre colonizador e colonizado, instalando dúvidas nas identidades. Essa troca de lugar é singular na história da colonização porque, como escreve Patrick Wilcken no seu admirável Império à Deriva, revela ao colonizador as misérias de seu péssimo caráter colonial. No caso do Brasil, volúpia autoritária ancorada numa formidável legislação, ao lado de uma trágica aposta na ignorância.

Após a audaciosa peroração e um gole de uísque, meu amigo adicionava a nossa obrigação de refletir sobre a demanda da democracia, que não pode ser reduzida a um mote eleitoral. Nela, a demanda mais dura surge no combate entre a concretude tangível das amizades e as exigências abstratas das normas.

Monumento A Justiça, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Wilton Junior/Estadão

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Você aceitaria julgar um inimigo declarado do seu padrinho-mandão, para quem você advogou e que o indicou para o tribunal ao qual pertence? Como não devolver a consideração e o afeto senão aceitando participar de uma vingança legal?

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Há um caminho pavimentado a ouro e a via das pedras. A escolha que jaz no coração dos mitos e fábulas revela a índole do herói e exprime a força do prêmio ou da maldição que mora no fim do caminho. O caminho mais difícil é o correto porque exigiu do herói o sacrifício de pensar menos em si e mais na integridade da sociedade. Daquilo que é o todo - o bom e o belo como diziam os antigos.

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Pedro Honorato foi banido da cidade que o elegeu prefeito porque assumiu integralmente (sem jeitinhos e malandragens) a impessoalidade inseparável do cargo. Desligou-se dos amigos, companheiros de partido e parentes para governar a cidade, procurando usar os recursos de que dispunha - tal como tentou fazer Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios, Alagoas. Seus amigos, compadres e parentes o renegaram, pois Pedro Honorato contrariava o axioma brasileiro segundo o qual temos todas as coragens, menos a de negar o pedido de um amigo.

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A “política” consiste nesse jogo de moldar leis e competências impessoais aos laços pessoais em todo lugar. Curioso que chamemos essa tramoia de “política”, desmoralizando um campo nobre da vida democrática.

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A nossa questão na vida pública é como honrar a impessoalidade desse todo que construímos, pois sabemos que a democracia requer uma neutra e digna impessoalidade - cerne de uma justiça equidistante. Entra regime e sai regime e continua faltando a tal coragem para resistir aos amigos...

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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