Cresci ouvindo pai e tios falarem de “golpe” como um remédio perigoso contra o “governo”. Governo concebido como uma pessoa e, no caso do golpe, uma pessoa corrupta, incompetente e fraca. Esse era o cenário propício a um golpe que, nos anos 1950 e 1960, jamais incluiu assassinatos. O golpe era pensado como uma drástica mudança de guarda, revelando finidade e condescendência entre elites na América Latina, região dos golpes, mas não de assassinatos, expressivos de uma infeliz liderança.
Quando meu esquerdismo ingênuo classificou papai como reacionário, ele advertiu: meu filho, um dia os militares tomam conta. Estava felizmente em Harvard quando o vaticínio aconteceu. Papai lamentava a ausência de pulso e o estímulo à subversão ocorridos no governo de Jango Goulart.
A intervenção que anula a legitimidade de governos eleitos mostra como legitimar pelo voto é difícil num país que golpeou a monarquia, viveu insurreições, governos elitistas e uma ditadura varguista que era admirada porque o autoritarismo do regime se dissolvia diante da figura simpática do ditador.
Golpe é um personalismo primo do “sabe com quem está falando?”. É bofetada na ordem para ressuscitar o salvacionismo das balas de prata que nos isentam de responsabilidade cívica para com o País, porque tudo é responsabilidade e culpa do “governo”.
Vivemos a época do protagonismo bilionário. Ele substituiu os barões e caudilhos com o seu capitalismo digital que deslocou o prestígio dos então apenas milionários – os Fords, os Guggenheims e os Rockefellers. Musk freudianamente investe em foguetes e numa política de exclusão. Os velhos ricaços investiam em centros culturais. Sou um ex-bolsista da Fundação Guggenheim e fui coordenador de um pioneiro programa de antropologia social financiado pela Fundação Ford. Sem essa filantropia inexistente no Brasil, meus estudos sobre o personalismo e a lógica relacional, que permeia o sistema social brasileiro e se revela nas reversões carnavalescas, seria impossível.
Fruto e fantasia autoritária de um Brasil senhorial, o golpe parecia estar fora de moda. Mas os fatos mostram que ainda temos de trabalhar para distinguir governos de pessoas. Os militares, que uma mentalidade pueril imagina fora da política, eram os atores que destrinchariam os erros da politicagem corrupta.
Hoje, meus tios e pai diriam que os golpes são antidemocráticos. Eles repetiriam a visão antidemocrática da democracia, porque o que se observa é uma triste relativização da lei por meio de supremas anistias. E o maior inimigo da democracia é a desigualdade perante a lei. Esse é também um golpe no campo político e social. É preciso condenar o golpismo político e o golpismo legal e jurídico. Golpismo togado que, por séculos, sustentou a burrice dos governos brasileiros. A burrice de achar que a realidade se resolve com a lei sem a sociedade.
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