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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | Não estou fazendo nada...

Elegemos muita gente comum que, empossada, torna-se nobre com os privilégios nos cargos

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Foto do author Roberto DaMatta

“O i, como vai você?”

“Vou bem, e você?”

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“Tento escrever uma crônica e está complicado. Você está fazendo o quê?”

“Roberto, eu não estou fazendo nada!”

Essa afirmação me intriga. Afinal, o “não fazer nada” está em oposição complementar ao “fazer alguma coisa” que nos remete à universalidade do trabalho e do lazer. Do pêndulo: movimento/repouso. E, no caso brasileiro, a expressão tem uma ligação direta com a preguiça como um valor que consagra o ter emprego, mas não trabalho. Sai e entra governo, mas esse projeto permanece imutável.

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Afinal, o que isso significa realmente? Sei que o nada é uma categoria difícil de ser traduzida. Aliás, eu não seria ingênuo a ponto de pretender explicar o tratado de Jean-Paul Sartre – O Ser e o Nada – publicado nos anos 1940, no qual se discute a construção do humano como um atuar sobre o mundo. Uma intenção sem a qual nos colocaria diante da paralisia do “nada”...

Paralisia ou impotência que hoje experimentamos na vida política brasileira, narcotizados que estamos por uma polarização a qual, como todo dualismo, congela e impede a história.


O nada do nosso dia a dia define uma pausa ou um hiato nas permanentes tarefas e trabalhos impostos pela vida Foto: Vidal Cavalcante/ Estadão


Voltando, porém, à coluna e ao jornal, pode-se dizer que o “não fazer nada” remete a imobilidade e, nesse sentido, o “nada” seria como o zero da matemática; ou o espaço vazio e uma tela esperando um pintor. Seria o ar bolorento inutilmente guardado numa gaveta; ou, quem sabe, seria esse batido (e esgotado) populismo que tudo promete e nada realiza...

Eu sou pequeno para o tamanho da questão, mas posso afirmar que o nada do nosso dia a dia define uma pausa ou um hiato nas permanentes tarefas e trabalhos impostos pela vida. Trabalhos sem os quais nós não teríamos vida; ou melhor, teríamos uma vida oca. Um existir no qual não houve espaço para que nela ocorresse alguma coisa. Uma vida vazia fabrica uma biografia sem coisa alguma – uma bela contradição, porque o vazio existencial é um feito formidável. Daria um conto de Edgar Alan Poe, imaginar uma vida na qual nada ocorreu; ou melhor dizendo: na qual o nada foi o tudo daquela existência.

Eu luto para escrever, mas o meu amigo imaginário nada faz. Ele me lembra os ajustes fiscais do Brasil que punem o povo e continuam mantendo uma camada dominante que se aristocratiza a cada eleição. Pois elegemos muita gente comum que, empossada, torna-se nobre com os privilégios embutidos nos cargos. Então, embriagados, viram reis e fazendo tudo sem fazer nada...

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Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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