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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | Nós tingimos o futebol com o nosso machismo que ‘come a bola’ e o adversário

No campo competitivo não há invencíveis, como gostam as religiões e as utopias políticas

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Foto do author Roberto DaMatta

Este placar indecente é rotina na política. É o saldo da corrupção, comadre do golpismo e mãe do legalismo, que destrói a imparcialidade da lei sem a qual não há universalismo democrático.

Em partida das Eliminatórias da Copa, seleção brasileira perdeu por 4 a 1 da Argentina. Foto: Natacha Pisarenko/AP

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A goleada da Argentina abalou o meu patriotismo futebolístico. Fui apresentado ao futebol em 1948, com 12 anos, e a primeira surpresa que dele recebi foi o direito de discordar de meu pai. Ele era Flamengo e eu, Fluminense. Numa sociedade na qual laços de família, “raça” e classe matavam a liberdade de decidir, o futebol abria a porteira da liberdade com igualdade que explica a sua popularidade.

Relacionando pessoas a coletivos personalizados chamados times e não clubes, o futebol abriu espaço para escolhas livres, marcadas pelo projeto de competição igualitária, abandonando, pelo menos no futebol, as hierarquias dominantes. No Brasil, foi o futebol que abriu um espaço de regras fixas, válidas para campeões, “lanterninhas” e “pernas de pau”. Uma governabilidade fora dos becos político-ideológicos do patrimonialismo. O Fluminense nada me cobrava ou constrangia. O elo entre o torcedor e seu amado time é pura liberdade e simpatia. Uma novidade num país de casas-grandes&senzalas!

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O futebol foi novidade a ser aprendida, mas, a partir de um certo momento, ele começou a nos jogar. Quando, com 88 primaveras, eu testemunho o Brasil “ser comido” pela Argentina dos “gringos” vivo um horrível sentimento de fracasso nacional. Era, afinal de contas, o Brasil englobado pela seleção que perdia de quatro. Era a seleção de ouro, que revelou à descrença nacional a possibilidade concreta de vencer e superar o colonialismo, que era derrotada. Não consegui dormir. O futebol se equiparava à política...

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Paixões clubistas, racistas e patrimonialistas são inibidas pela seleção brasileira. O futebol arquiteta uma reunião dos melhores para inventar um “Brasil” capaz de subverter supostas determinações coloniais, quando transforma e domina uma instituição do modelar imperialismo inglês. Foi, sem dúvida, a aculturação desse estrangeirismo que facultou ao “football” esse roubo que – reitero – subverte os pressupostos do nosso marxismo juvenil.

Foi o futebol que mostrou a possibilidade de uma superação colonizadora, ao lado da igualdade como regra e valor.

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Nós tingimos o futebol com o nosso machismo que “come a bola” e o adversário. A dialética, porém, nos obriga a enxergar que quem joga é, inexoravelmente, jogado pelo jogo. No campo competitivo não há invencíveis, como gostam as religiões e as utopias políticas. O futebol ensina a incompletude humana nas suas oscilações entre matar e morrer – essas dimensões sem as quais não há jogo ou vida.

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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