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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | O autoritarismo do ‘você sabe com quem está falando’, agora à bala

Volto ao assunto, ao rito que conheço desde menino, diante do caso de Vila Valqueire, no Rio, quando um entregador de refeição levou um tiro por não ter se comportado de acordo com as expectativas dos clientes

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Atualização:

Tenho estudado o rito que intitula esta crônica. Conheço-o desde menino e ele, como costume ou hábito, é parte “natural” de um autoritarismo persistente da minha sociedade. Um autoritarismo grudado ao lado igualitário que o republicanismo tornou oficial.

É essa dicotomia que sustenta dois Brasis e produz indecisão nos processos históricos nacionais, divididos entre a pessoalidade das casas e a impessoalidade requerida, mas não realizada, da lei e dos palácios.

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Volto ao assunto diante do caso de Vila Valqueire, no Rio, quando um entregador de refeição levou um tiro por não ter se comportado de acordo com as expectativas dos clientes. Foi um você sabe com quem está falando à bala.

No antigo carnaval, uma brincadeira muito popular era um mascarado perguntar: você me conhece? E, em seguida, submeter a vítima a algum abuso. Como ser desconhecido num sistema em que cada pessoa e cada coisa têm o seu lugar? Saber o seu lugar marca uma pessoa bem-educada e “boa” no Brasil.

Entre nós, até meia hora atrás, não se falava em cidadania, mas em mandões e na “raia miúda”; em “gente bem” e grã-finos e escravizados, serviçais e inferiores, os que tinham como sina “trabalhar pra burro”. A expressão reafirma o trabalhar como castigo.

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No Rio, entregador foi baleado por um cliente Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Vejam bem: até um minuto atrás, trabalhar era servir a alguém. Pois o nosso sistema cultural demanda ser servido. Eis uma intrusão cabal da velha moral hierárquico-escravocrata. Trabalhar era (?) estigma, jamais vocação ou chamado. Confundir o patrão que mora em todos nós com um “ninguém” é não ter noção desse princípio básico: o saber com quem se fala!

Se há a suposição de que eu devo saber com quem estou falando, o ideal seria conhecer todo mundo e viver numa sociedade pessoal e hierarquizada. Nela, todos conheceriam o seu lugar. Convenhamos que mudar é difícil neste sistema porque todos têm consciência de lugar e a relação pessoal compete com a impessoalidade da lei, que é pessoalmente canibalizada.

A lei existe para todos, mas se os elos entre as pessoas são fundamentais então a lei é relativamente aplicada. Ela sofre os efeitos do sabe com quem está falando, porque temos superpesadas que não precisam seguir as leis.

O “sabe com quem está falando” explica a desconfiança ao governo da lei. Ele é a marca do particularismo que vence as leis universais – esse eixo da democracia. Um lado demanda razões pessoais; um outro, universalismo. Um dos elos entre essas duas nações entrelaçadas é o golpe, a dissimulação, o jeitinho, a malandragem e toda essa gama de execráveis populismos. Donde a questão: como civilizar-se na igualdade sem disciplinar esse rito tão vergonhoso quanto violento.

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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