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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|O Brasil não pode ser alienado

Instituições autônomas atuam limitando tanto o lado permanente do Estado quanto o lado ativo e mudancista do governo

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As reações de Lula III contra o Banco Central do Brasil estampam o que tenho repisado nesta coluna. A nossa aversão à impessoalidade que cabe ao Estado, mas não consta da agenda de governos. Soberania, moeda, confiança na Justiça e retidão moral cabem ao Estado, sem o qual não haveria Brasil. Numa democracia, essa distinção pressiona governos eleitos e temporários a ter consciência das dimensões permanentes do País, de modo a contrapesar seus programas políticos.

Instituições autônomas atuam limitando tanto o lado permanente do Estado quanto o lado ativo e mudancista do governo. O laureado Plano Real é exemplo disso. Ele foi um projeto do e para o País. Ou seja: tanto para o governo quanto para o Estado e para a sociedade. Não fosse, porém, o temperamento excepcional de FHC ele teria fracassado na permanente batalha entre o pessoal e o impessoal.

Lula III revela a mesma rabugice diante da igualdade de todos perante a lei. Foto: AFP e Wilton Junior/Estadão

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Tais reações são sintomas da nossa índole aristocrática, que cultiva um viés indeciso sobre tudo o que valeria para todos – sobretudo para governos. Tal viés questiona se é possível uma convivência cordial entre governo e Estado. Tal dissidência mostra um grave esquecimento da entidade que contém tanto o Estado quanto governos: o Brasil reduzido a apenas “povo” e partidos e, assim, sistematicamente esquecido pelo realismo da “política”, que é efetivada por meio de amizades corajosamente honradas.

A recusa de tudo o que é impessoal – dos sinais de trânsito às leis e regras mais triviais – é o traço distintivo de culturas relacionais e hierárquicas, que adotam a democracia como forma, mas não como realização. Por isso, elas reagem fortemente ao ideal de nivelamento para todos. Esses “todos” que formam o “povo”. Os que sempre estão fora do poder. Esse poder que eles legitimam, mas que tem razões que a “política”, na sua imprudência, desconhece. Essas razões do sangue, da troca de favores, ou das vinganças que fazem parte de sistemas de Justiça relacionais que estão abaixo ou acima das leis.

Lula III revela a mesma rabugice diante da igualdade de todos perante a lei. Volto a esse “todos” porque, neste Brasil, a equidade sinaliza esmola e inferioridade – o fantasma vivo do escravizado.

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Aliás, o outro “Messias”, que saiu embrulhado em um golpismo patético – golpismo que faria o governo anular o Estado –, também ignorava protocolos universais. Sua resposta ao universalismo da vacinação foi a desprezível falsificação de um prosaico certificado. O descaso pelo impessoal reitera a permanente relatividade legal que observa: “A lei, meu caro, vale para você, não pra mim!”.

Entre essas grandiosas e assustadoras entidades – Estado, governo e cultura – existe o Brasil. Um Brasil que nos deu língua, solo, história e alma e que não pode ser esquecido ou, como se dizia antigamente, alienado.

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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