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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|O que fazer com essa angústia de não ter futuro, esse alívio misturado a desespero?

Roberto DaMatta, que fez 88 anos, dialoga com seus outros eus no momento em que ele se questiona sobre o envelhecimento

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Foto do author Roberto DaMatta

O que significa isso? - pergunta Robertão, meu lado autoritário e estrangeiro, para Robertinho, meu lado filhinho de mamãe e careta - Como “primaveras”, estás parvo? Fizeste oitenta e oito anos e chegaste ao fenecimento, ao inverno, e não à primavera. É velhice, não há como esconder ou negar.

‘Viva sua angústia de idoso. Tire dela o melhor partido. Curta o seu uísque e amor de sua mulher’ Foto: mtrlin/adobe.stock

- Então, o que faço? - respondeu Roberto, que transcreve essa conversa. Tranco-me em casa e rezo esperando uma boa morte?

- Robertinho, esquece esse negócio de boa morte porque sabes bem como toda morte é dolorosa e, muitas vezes, súbita: uma bofetada na cara!

- Certo, mas o que fazer com essa angústia de não ter futuro? Esse alívio misturado a desespero?

- Reze, amigo.

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- Tenho tentado, mas o intelecto subversivo bloqueia.

- Que tal o sexo?

- Vamos mudar de assunto, você está muito abusado.

- Então, fazer o quê?

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- Não há receita ou remédio. Escreva, seja livre, porque a literatura é a maior ferramenta do conforto e da liberdade humana. Foi ela, e tem sido através dela, que nós atenuamos essa consciência do absurdo que é o viver humano, como disse Albert Camus.

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- Concordo...

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- Viva sua angústia de idoso. Tire dela o melhor partido porque tudo que você fizer nesta idade conta muito mais do que aquilo que você já foi capaz de fazer. Deguste seu uísque e o amor de sua mulher e seu corpo e sua alma. Continue preocupado e amando aqueles que, por seu intermédio, vieram para esse Vale de Lágrimas.

- Roberto, tu leste tanto sobre as sociedades patriarcais e vives numa. Tire partido desse papel de patriarca que hoje é todo teu. Afinal, o que se acumula deste mundo do qual nada se leva?

- Nada. Na morte, de tudo abrimos mão. A morte é um abandonamento. Choramos na entrada, quando nascemos, e na saída, quando morremos. A gente sempre sabe, mas esconde, porque encobrir é o cerne da nossa humanidade.

Somos, disse Roberto, o único bicho capaz de nos esconder de nós mesmos. Curta seus 88 como eles merecem: com ternuras infinitas ao lado do Rocco, o primeiro dos seus bisnetinhos encantados. Lembre-se da sabedoria antiga dos rabinos: devemos desconfiar de quem jamais sofreu. Feliz aniversário!

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Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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