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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | Os Estados Unidos estão aprendendo o jeitinho brasileiro?

“‘Tenho coragem para tudo, menos a de negar o pedido de um amigo’ permanece como sinal dessa ‘brasilianização’ que consiste em aplicar a lei aos inimigos e dela salvar os filhotes e compadres”; seria uma inspiração para Biden?

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Com meus irmãos e amigos, brinquei de caubói, imitando filmes americanos. Na minha adolescência, a iniciação na área do “ficar apaixonado”, a gloriosa música popular americana era a linguagem dos nossos namoros. Canções como Too Young exprimiam o que nos agitava.

Aprendi inglês com excepcionais professores: Nat King Cole, Billie Holiday, Doris Day e, claro, Frank Sinatra. A americanização (reveladora do imenso poder cultural dos EUA) era tão intensa que nos vestíamos imitando os artistas de cinema e fazíamos declarações de amor em inglês. O verbo amar foi liberado por essa “americanização” que trocou o verbo gostar pelo “love”. O epíteto derrogatório – “geração Coca-Cola” – para os nascidos entre 1930 e 1940 confirma essa influência.

O presidente Joe Biden acompanhado de seu filho Hunter e seu neto Beau, em 29 de novembro. Foto: Jose Luis Magana/AP

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Aprendi a acender o cigarro de uma moça com Gregory Peck. Cary Grant foi meu modelo de elegância. Tentei dançar como Fred Astaire. Vivi, entrementes, com Montgomery Cliff e Elizabeth Taylor a possibilidade de dar-recebendo um beijo infinito – o beijo do fim do filme.

Mais tarde, tudo aquilo virou alienação. Os musicais de Hollywood eram lixo ante o hermetismo dos filmes de Glauber Rocha, que nos mostravam a tolice de termos visto três vezes um mistificador Cantando na Chuva.

A “conscientização” nos revelou o feudalismo do Brasil e nos fez enxergar como tínhamos sido americanizados por um demoníaco capitalismo. O estilo de vida americano era pura mistificação e o herói russo Gagarin (que visitou Niterói, onde levou uma dedada da turma de um querido amigo) virou, junto a alguns filmes russos e uma teoria comunista à brasileira, programa de vida.

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Depois de uma tortuosa ditadura, e de sair para ficar no mesmo lugar, descobrimos que, acima de tudo, jaz uma perene incompetência governamental fundada nas ambiguidades de um sistema que combina igualdade perante a lei com anistias e isenções confirmadoras de um forte estilo aristocrático. Com o fracasso de Cuba e da Europa comunista, a América surgiu como um país no qual as contradições e os dilemas do capitalismo podiam encontrar um lugar.

Mas o Brasil continua a sofrer de personalismo e populismo. O axioma de Oliveira Viana: “Tenho coragem para tudo, menos a de negar o pedido de um amigo” permanece como sinal dessa “brasilianização” que consiste em aplicar a lei aos inimigos e dela salvar os filhotes e compadres. Que contraste, dizia-se, com os EUA. Uma terra na qual os políticos tinham convicções igualitárias e privilegiar parentes estava fora de questão. Hoje, com as “fake” e “deepfakes”, sabemos que o mundo tem países diferenciados, mas os homens – bem os homens – têm obrigações pessoais inevitáveis. Os EUA são democratas, mas fazem como Biden com seu filho Hunter. Particularizam a universalidade da lei, dando um “jeitinho”. Igualzinho ao que é habitual no Brasil. Será que a brasilianização universalizou-se?

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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