Até sair de casa, fui governado pelo meu pai, que, pouco falante, comandava monocraticamente a família - mulher, irmã, seis filhos, a empregada doméstica - e gerenciava secretamente as finanças. A casa, porém, era administrada e, às vezes, governada, por mamãe e pela “empregada,” ao lado da marginal atuação das “crianças”. Naquele tempo, não tinham vontade!
Claro que o mandão supremo era o Pai. Mas quem comandava o cardápio, compras de comida, a higiene, as boas maneiras e o bem-estar geral era a Mãe, que, ademais, nos encantava com o seu piano. Ilma do Nascimento, a empregada cuja memória eu reverencio com o sentimento moldado por uma irreparável história de opressão escravocrata, figurava como o lado externo da casa. Tal gradação de governanças surgia no direito ao uso de espaços e objetos, especialmente banheiro, vitrola e TV.
O Pai era Executivo e claramente Judiciário; a Mãe, filhos e empregada, o Legislativo - o “povo” e o eleitorado.
Até constituir o meu regime, vivi num sistema monocrático, testemunhando as vergonhosas e reiterativas crises entre os três eixos institucionais constitutivos do republicanismo.
Para qualquer latino-americano, é compreensível essa crise entre o Senado e o Supremo. Num continente de tiranos e caudilhos, todos são zelosos dos seus poderes, os quais, em democracias, infelizmente não são monocráticos, mas interdependentes e complementares. Não deveriam ser competitivos, como entendem alguns dos seus titulares.
A crise, todavia, desmascara nosso desconforto com a ausência de um supremo mandão. De um chefe absoluto, capaz de reunir a dominação patrimonial com a carismática numa estrutura jurídica onipresente, totalmente fiel não apenas às suas infindáveis leis, mas aos que delas abusam. A repartição dos poderes é, para nós, latinos, forjada na Contrarreforma, na Inquisição e nos mandonismos monocráticos, mais que um problema. É um dilema.
Revela a dificuldade de atuar impessoalmente, institucionalmente ou, para usar um chavão fácil de escrever, mas duro de honrar, democraticamente. Seguindo regras resistentes ao personalíssimo que reduz a dinâmica democrática voltada para o todo, à politicagem privada.
Os “poderes” são idealizações propostas para sublimar interesses particulares. Eles exigem que seus membros honrem o princípio do “sine ira et studio” (sem rancor ou paixão), que é, exatamente, a nossa questão...
PS: Veremos até onde o fogo da política vai cozinhar a crueza de um Milei candidato, num cozido de um Milei eleito.