Respondo sem medo de erro, de cara limpa e sem uísque: porque é uma festa recorrente e repetitiva e, desse modo, reproduz as idas e vindas ambíguas do País.
O carnaval está colado ao calendário católico e faz parte da concepção de tempo do Brasil. Um tempo cíclico, avesso à transformação que, em cada movimento de mudança, se personaliza e se reproduz, retomando ou simplesmente reconstruindo o passado costumeiro. O carnaval também redefine o espaço, porque ele contemporiza a hierarquia e instala um ambiente de escolhas individuais e grupais que competem entre si sambando e cantando em desfiles majoritariamente míticos. Na de Momo, a rua selvagem vira sala de visita. Transforma-se num local de harmonia, deixando de lado a casa com suas portas e familismos.
Pessoas que se sabem “pobres” se destacam e viram o jogo, usando fantasias que contrastam com os papéis que ocupam nas suas vidas diárias. As populações de bairros periféricos se transformam em atores e desempenham um drama feliz, contagiante e, claro, fazendo sombra às peripécias quase sempre legalmente absurdas dos políticos.
O carnaval e algumas festas de santo são as únicas festividades nas quais o “Estado” e seus “governos” desaparecem. É festa do povo enquanto povo...
Os “de baixo” transformam-se nos ícones de procissões-desfile – e viram os santos heróis míticos fantasiosos que protegem nossas vidas do “alto” onde vivem, engendrando sentimentos de identidade e solidariedade entre camadas que num passado recente e ainda vivo eram enjauladas como senhores e escravos.
Essa liberdade festiva e apaixonada na sua sensual e sedutora democracia, revela o talento desprezado dos “pobres”. Ela é espírito do carnaval e um breve sonho brasileiro.
É o fogo da nossa folia-loucura que ainda não sacou que o mundo de ponta-cabeça é um ato afim da tão prometida e aguardada igualdade democrática. Ato que não deve vir de nenhum “salvador-enterrador” pátrio, porque ele é do povo livre na sua alegria modulada por música e ritmo que afirma e celebra o direito de “brincar”. Ou seja: de viver uma igualdade moderada e breve que, por isso mesmo, só pode acontecer neste tempo de reversão e “pecado” que anuncia a pobreza e a disciplina contida da Quaresma. Tempo de a sociedade se redimir de seus pecados. Quarta-feira de Cinzas, símbolo de culpa e arrependimento até a Páscoa.
Todo ritual orgiástico inverte o mundo. Se tivesse um pingo de componente político explícito seria revolucionário e reprimido. Mas seu enredo não fala em transformação social, mas em reforço e alegria de pertencer a uma ordem humana que se repete ousadamente somente nas festas.
Tal como também se repete e se satisfaz na política carnavalizada na qual até o passado é desfeito. Essa região onde tudo pode mudar e, para nossa vergonha, nada muda.
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