EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | Um velho no ano-novo: entre a vida, a morte e a eterna juventude do espírito

O nascente ano ensina, ao velho de 88, a lição ouvida pelo menino nos contos de fada que inesperadamente transformavam o populismo da fada má na bondade da fada boa, a mensageira da honestidade e do trabalho

PUBLICIDADE

Foto do author Roberto DaMatta

“Time is so old/ And love so brief/ Love is pure gold/ And time a thief…"

Kurt Weill

Queima de fogos na areia da praia de Copacabana no revéillon.  Foto: Pedro Kirilos/Estadão

PUBLICIDADE

Quando menino, queria que os anos voassem para gozar os privilégios dos adultos. Cresci debaixo do fosso das proibições que tentei e creio que tive algum sucesso em diminuir quando virei pai e agradecido avô para meus netos e bisnetos, que chegam revelando o encanto extraordinário da minha pequena vida. Uma vida que teve como alvo, nem sempre honrado, a generosidade e o trabalho.

Encontrei tal como você, eventual leitor, a ingratidão, a inveja e o sofrimento. E a cada ano vivido – e foram mais do que esperava – batalho para continuar crendo nos contos de fada de tia Amália, nos filmes de Capra e nas histórias de Jorge Amado, Thomas Mann e O. Henry, sem esquecer a emoção quando recordo as palavras pungentes do Salve Rainha, oração criada pelo monge Hermano Contrato 50 anos depois do ano 1000. Um milênio cristão certeiramente lacrado como um vale de lágrimas a ser suportado pela intercessão da Virgem Maria, mãe de um Deus que afirmava transcendência, salvação e finalidade, na imanência de sua mortal e sofrida encarnação.

Aquilatar a reza do Salve Rainha pode demorar um milênio ou os 88 anos de minha vida de professor, autor e Ph.D. em ciências ocultas e letras apagadas.

Publicidade

Hoje, vejo esse novíssimo 2025 com singular e gratíssima desconfiança, pois posso fazer tudo o que me foi proibido e, indo ao extremo jamais mencionado pelos meus maiores, posso também – Deus me acuda! – morrer.

O fato é que esse ano novo leva o velho a um texto do sociólogo harvardiano Talcott Parsons que, estudando a dualidade da vida com a morte – essa polaridade fundadora da condição humana –, sugere que, no cristianismo, Deus nos deu a vida como um presente. E, como toda dádiva, exige uma retribuição, um dar-de-volta contido no dar, no receber e no retribuir, na estrutura da reciprocidade, como ensinou Marcel Mauss.

Então, o nascente ano novo ensina, ao velho de 88, a lição ouvida pelo menino nos contos de fada que inesperadamente transformavam o populismo da fada má na bondade da fada boa, a mensageira da honestidade e do trabalho.

Viver a vida até o seu arremate é a nossa retribuição ao Deus que nos fez à sua imagem e semelhança, como anuncia o cristianismo.

A morte, além de ser a criadora do tempo e da história, é o nosso sacrifício e a nossa retribuição ao criador, e a todos que conosco compartilham da teia que nos torna humanos.

Publicidade

O que faz, pois, um velho de 88 anos diante de um ano recém-nascido? Ele reafirma a sua acolhida da vida e da morte – do menino e do velho.

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.