EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | Uma crônica pautada...

Vivemos nas cinzas apropriadas aos abusos contra a natureza e nós mesmos, como revela a primitiva e arrogante presidência de Donald Trump

PUBLICIDADE

Foto do author Roberto DaMatta

Há mais de uma década, escrevo neste espaço nas quartas-feiras. E toda semana reflito sobre o que escrever, o que faz muito bem ao meu cérebro de 88 mascaradas primaveras. Mas, quando chega o carnaval, fico sossegado porque sou pautado pela Quarta-Feira de Cinzas. Dia dessas cinzas que simbolizavam a contrição própria da Quaresma, finalizadora dos excessos do carnaval.

Tais ritos de calendário eram apropriados a um tempo no qual havia estações climáticas previsíveis, hoje permeados pelos cinzas dos inesperados. Vivemos nas cinzas apropriadas aos abusos contra a natureza e nós mesmos, como revela a primitiva e arrogante presidência de Donald Trump. Um avesso carnavalesco que acinzenta a geopolítica mundial com um novo e inesperado eixo entre dois autocratas - o do leste, almejando refazer a grande Rússia e o do oeste, com a maluquice narcisística de fazer a América grande novamente.

PUBLICIDADE

O carnaval tem muitas dimensões, conforme mostrei em 1979, no livro Carnavais, Malandros e Heróis. Mas ele sempre oscilou entre “casa” e “rua” - bailes, blocos e escolas de samba - numa segmentação reveladora da carnavalização de um passado aristocrático e escravocrata, por comunidades carentes que desfilam com pompas de realeza, com suas rainhas e mestres-salas principescos, reinterpretando os desfiles dos nobres com suas luxuosas vestimentas.

O carnaval que acabou - porque o da “política” com seus arcaísmos e máscaras persiste - revelou a predominância dos blocos de rua, que individualizam preferências num exercício carnavalesco de liberdade individual. Neles há um bloqueio de moralidades estabelecidas. No seu seio momesco, tudo é permitido porque é “brincadeira e folia (loucura) de carnaval”. Qualquer abuso inocenta o abusador. Antigamente, tal comportamento era próprio dos “bailes” nos quais não se dançavam valsas e havia a dessacralização do ato mais profundo que um ser humano pode praticar: o amor carnal.

O carnaval que acabou revelou a predominância dos blocos de rua, que individualizam preferências num exercício carnavalesco de liberdade individual. Foto: Joedson Alves/Agência Brasil

Naqueles tempos antigos de repressão, a licenciosidade carnavalesca precisava de cinzas. Hoje, vivemos em permanentes cinzas e o limite é o suicídio simbólico que se faz claramente presente no golpe que Trump aplica nos atordoados liberais americanos. De fato, como suportar tamanha desfaçatez e má-fé no uso do poder, senão aproximando carnaval e golpe, ambos baseados na inversão da ordem?

Publicidade

É penoso constatar que o país que sempre se preocupou com a lei, a verdade e a honestidade norteado por um puritanismo fundador tenha chegado a esse ressentido trumpismo que, deflora a república estadunidense - valha-me Deus! - no sacratíssimo Salão Oval da Casa Branca!

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

Comentários

Os comentários são exclusivos para cadastrados.