Romance de Maryse Condé faz releitura da perseguição às bruxas de Salem

Autora francesa nascida em Guadalupe aceita o desafio de transportar a peça de Arthur Miller para a perspectiva negra

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Por Faustino Rodrigues

O julgamento das “bruxas” de Salem é conhecido e já foi bastante explorado pela historiografia, literatura e cinema. Abordá-lo como novidade é um desafio. Ao escrever Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem – publicado originalmente em 1986, mas lançado em nova edição recentemente pela Rosa dos Ventos, selo da Editora Record –, Maryse Condé o aceita. E o faz evocando um debate a englobar, sob novo ângulo, o racismo e machismo vivido pela personagem homônima. 

Scott Parkinson, Lilian Oben e Michael Russotto em cena da peça 'The Crucible', inspirada na histeria das bruxas de Salem Foto: Stan Barouh/Olney Theatre

O episódio de 1692 tornou-se célebre ao grande público por meio da peça teatral de Arthur Miller, As Bruxas de Salem, encenada em 1953 e também representada cinematograficamente na década de 1990. Nela vemos a histeria coletiva da perseguição às “bruxas” de um povoado da Nova Inglaterra. No recente estudo publicado por Stacy Schiff, As bruxas – intriga, traição e histeria em Salem, a autora sugere que Miller preocupou-se com uma representação real do episódio. Ao concentrar-se nos fatos, deixou de lado uma série de documentos, como cartas, mandatos judiciais e sermões, por exemplo. Realmente, são fontes escassas e de difícil acesso, mas, que contribuem para redimensionar a perseguição de Salem e, principalmente, para entender as injustificáveis motivações dos perseguidores. Sem isso, conforme Schiff sugere, o trabalho de Miller, a despeito do valor literário, tende a se restringir ao caráter de um relato. Definitivamente, As Bruxas de Salem reproduz os acontecimentos reais, as perseguições e julgamentos, sustentando uma grande qualidade estética, insinuando a injustiça e loucura de toda uma comunidade colonial que via o demônio por todos os lados. Contudo, pensando em 2019, não atualiza o debate.  A escritora Maryse Condé, natural de Guadalupe, tinha apenas 16 anos quando a peça de Miller foi encenada pela primeira vez. Ao longo da vida, adquiriu notoriedade pela ficção histórica, contando com dezenas de livros publicados e um pujante ativismo feminista. Ganhou, em 2018, o The New Academy Prize in Literature, uma premiação alternativa ao Nobel, suspenso em 2018 devido a escândalos sexuais na instituição. Atualmente, vive em Nova York, sendo professora emérita de francês e literatura românica na Universidade de Columbia. Por seu ofício de pesquisadora, Condé adquiriu uma familiaridade com o manuseio de documentos para escrever os seus romances. Foi nesse contexto em que compôs a personagem Tituba, valendo-se de fontes não utilizadas em trabalhos literários anteriores sobre os eventos de Salem.  Desde o princípio Condé anuncia que estamos diante de um romance. De modo ousado, tal como é reforçado no belo prefácio de Conceição Evaristo, propõe uma releitura do vergonhoso episódio da justiça norte-americana. A autora propõe um contato maior com a realidade dos acontecimentos, dialogando com o fator causal e, diante disso, tece com extrema habilidade uma ficção que colore a sua protagonista, Tituba, de uma humanidade frente a sua vida. Em Eu, Tituba... não há um minucioso relato da perseguição de Salem, embora o depoimento de Tituba seja apresentado. No livro, a ficção desponta na descrição de uma personagem afetada pelas circunstâncias. É com a narrativa em primeira pessoa que Maryse Condé a romantiza, esmerando-se em relatar sua saída de Barbados, consequência do amor por um homem, passando pela admissão do crime de bruxaria, até a sua sobrevivência derivada do perdão obtido no processo. Há, portanto, um redimensionamento do impacto do episódio na vida dos envolvidos, sobretudo Tituba. Magias, feitiços, diálogos com os mortos, enfim, elementos característicos dos rituais religiosos da cultura de matriz africana, estão sempre presentes. Compõem Tituba e guiam seu comportamento não somente em Barbados, no Caribe, mas também quando se coloca diante da loucura de seus senhores, na Nova Inglaterra.  Notamos, então, o choque de culturas que leva a muitos dos dilemas da protagonista. A noção de bruxaria, originalmente, não existe para ela, sendo incompreensível. Porém, tem de admitir ser uma bruxa. Surgem dúvidas e um imenso sentimento de culpa. Tais dilemas são conduzidos, na ficção, por meio de questionamentos ao leitor. Tituba conversa conosco por meio de perguntas a espera de respostas de quem lê. As dúvidas não são respondidas no próprio enredo. A despeito dos dilemas, a narrativa não é pesada. Contrariamente, eles anulam as imposições típicas da linguagem panfletária do debate político com pausas comedidas, insinuando grande profundidade – não é sentenciadora, impositiva e conclusiva. Progressivamente, damo-nos conta da calma e leveza na escrita, distante da assertividade de uma visão previamente definida. O leitor é convidado à reflexão pela exigência de sua interpretação dos fatos.  A relação de causa no episódio de Salem é fundamental para a condução do romance. O diálogo permanente com o leitor, também. Por meio dele, Condé compartilha a responsabilidade, transcendendo o aspecto puramente descritivo. As motivações dos acusadores suspendem quem lê a obra de Condé, exigindo-lhe uma análise dos fatos a partir de Tituba. Dialogamos, assim, com o racismo e o feminismo e sua incidência na formação da personagem.  O romance prossegue após o julgamento e a tentativa de Tituba reconstruir sua vida. No retorno a Barbados nos deparamos com a marca da injustiça ao ser constantemente categórica: “não fiz nada de errado”. Porém, o sentimento de culpa comum às vítimas pela imposição dos acusadores a persegue quando se dá conta da confissão ao longo do processo. Ela é a única das perseguidas a admitir o “crime de bruxaria”. Entretanto, o que importa é: em que circunstâncias ela o confessa? Tituba não poderia ser impulsiva, detentora de uma razão a conduzir o leitor, de modo a esperar sempre, na página seguinte, a imposição nas falas quanto à sua condição. O fato de sempre lhe ser presente a culpa, a ansiedade, a dor na consciência materializada na confissão feita no tribunal, o seu amor por Indien, entre muitas outras coisas, conforma a personagem. Condé molda, nas mesmas proporções, a humanidade ao feminismo, ao combate ao racismo, que surgem não como um ato milagroso de consciência, mas, em meio à confusão dos pensamentos. A ficção lhe permite isso. Nada estaria restrito somente à necessidade de justiça. É para evidenciar esses elementos que as falas de Tituba surgem sempre como interrogações. Condé demonstra como o impacto da colonização na formação do sujeito é inevitável. Tituba, mesmo quando se anuncia como uma lenda no retorno a sua terra, sente-se culpada pela confissão. Nesse caso, não há apelo, um resgate quase cego da cultura negra como algo redentor. Embora seja heroína, ela, inevitavelmente, estará marcada pela culpa.  A proposta de Maryse Condé é uma releitura dos episódios de Salem, com a apresentação de temas atuais, como feminismo e combate ao racismo, de forma bastante humanizada. A autora se isenta da criação de um heroísmo fácil – Tituba poderia ter se tornado uma lenda pura da resistência negra, por exemplo. A Record é feliz em republicá-la. Reler, neste caso, é fundamental. Com as lentes de hoje, necessário. 

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