Os entusiastas de William Shakespeare ganharão mais um ingrediente nas conspirações sobre os bastidores de uma das suas obras. A partir de 30 de junho ficará disponível aqui no Brasil o romance Hamnet, da autora irlandesa Maggie O'Farrell (Depois Que Você Foi Embora), com a teoria de que a peça Hamlet, um dos maiores clássicos do dramaturgo inglês, trata-se de uma homenagem do próprio para o filho Hamnet Shakespeare, morto em 1596 aos 11 anos.
Maggie define o enredo como uma história “sobre o luto, a peste e uma das maiores peças de todos os tempos”. A obra, que se passa na Inglaterra do século 16, onde pairava uma nova doença - a peste bubônica -, narra a vida e morte do garoto e traz os relatos do pai escrevendo a peça dedicada a ele.
O texto é iniciado com o pequeno Hamnet à procura de ajuda para sua irmã gêmea, Judith, que está com febre. Agnes, a mãe deles, está a quilômetros de distância, na propriedade onde cultiva ervas medicinais. O pai das crianças está em Londres, trabalhando com sua companhia de teatro.
A partir deste momento, a autora convida o leitor a conhecer o retrato de um casamento abalado pelo luto e, através de uma reconstituição ficcional, ela busca apresentar a curta vida do menino, que teria inspirado uma das peças mais celebradas ao longo dos anos.
Já em Hamlet, o escritor conta a história de como o príncipe da Dinamarca, Hamlet, tenta vingar a morte de seu pai, o rei Hamlet, executado por Cláudio, seu irmão, que o envenenou e em seguida tomou o trono casando-se com a rainha Gertrudes.
William Shakespeare casou-se aos 18 anos com Anne Hathaway, com quem teve três filhos, Susanna, e os gêmeos Hamnet e Judith. Quatro anos após a morte do herdeiro, o inglês escreveu Hamlet.
O livro Hamnet será lançado no clube de assinatura Intrínsecos, da editora Intrínseca, para quem assinar até o dia 30 de junho. Os preços são R$ 54,90/mês mais frete fixo de R$ 10,00 (plano anual) ou R$ 59,90/mês mais frete fixo de R$ 10,00 (plano padrão). Para os não assinantes, a obra chegará às livrarias em setembro.
Trecho inédito
Leia abaixo um trecho do livro cedido exclusivamente ao Estado pela editora Intrínseca, que publicará a obra no Brasil:
menino, Hamnet, corre pela rua, dobra uma esquina, driblando um cavalo postado, pacientemente, entre os eixos de uma carroça, e contorna um grupo de homens reunidos do lado de fora do auditório da guilda, conversando entre si com expressões sérias. Passa por uma mulher com um bebê no colo, que implora para uma criança mais velha andar mais rápido, a fim de acompanhar seu ritmo, um homem açoitando o lombo de um burro, um cachorro que levanta os olhos do que quer que esteja comendo para observar Hamnet correndo. O cachorro late uma vez, numa repreensão veemente, e depois volta a mastigar.
Hamnet chega à casa do médico — pedira o endereço à mu- lher com o bebê — e bate na porta. Registra, momentaneamente, o formato dos próprios dedos, as unhas, e olhá-los lhe traz de volta à cabeça os dedos e as unhas de Judith; bate com mais força. Esmurra, soca, grita.
A porta se abre e o rosto magro e aflito de uma mulher surge na fresta.
— O que você está fazendo? — grita a mulher, balançando um pano na direção de Hamnet, como se ele fosse um inseto. — Essa barulheira toda acorda um defunto. Vá embora.
Ela vai fechando a porta, mas Hamnet dá um pulo para a frente.
— Não. Por favor. Desculpe, minha senhora. Preciso do mé- dico. Nós precisamos. Minha irmã... Ela não está bem. Será que ele pode ir lá em casa? Agora?
A mulher segura com firmeza a porta com os dedos avermelhados, mas olha para Hamnet com cautela, com atenção, como se lesse a gravidade do problema nas feições do menino.
— Ele não está — diz finalmente. — Foi ver um paciente. Hamnet tem que engolir em seco.
— Quando ele vai voltar, pode me dizer?
A pressão sobre a porta está cedendo. Ele põe um pé dentro da casa, deixando o outro do lado de fora.
— Não sei dizer. — Ela o examina de alto a baixo, olha o pé já dentro do vestíbulo. — O que tem a sua irmã?
— Eu não sei. — Pensa então em Judith, na sua aparência lá deitada nos lençóis, os olhos fechados, a pele corada, mas ao mesmo tempo pálida. — Está com febre. De cama.
A mulher franze o cenho.
—Febre? Ela tem bulbos?
— Bulbos?
— Caroços. Debaixo da pele. No pescoço, debaixo dos braços.
Hamnet olha fixamente para a mulher, para a pequena prega de pele entre as sobrancelhas, para o arremate da sua touca, notando que ela ralou a pele atrás da orelha, para os fios eriçados de cabelo que escapam da parte de trás. Pena na palavra “bulbos” em sua sugestão vagamente, vegetal, em como seu som volumoso imita a coisa que ela descreve. Um suor frio lhe empapa o peito, aprisionando instantaneamente seu coração numa pedra de gelo indestrutível.
A mulher franze mais o cenho. Põe a mão no centro do peito de Hamnet e o empurra para trás, para fora da casa.
— Vá — ordena, com o rosto contraído. — Vá para casa.
Agora. Já. — Ela está fechando a porta, mas, então, pela mais estreita das frestas, diz, não de forma grosseira: — Vou pedir ao médico para ir lá. Sei quem você é. O garoto do luveiro, não? O neto dele. Da Henley Street. Vou pedir ao doutor para passar na sua casa, quando voltar. Agora vá. Não pare no caminho. — E acrescenta, quase automaticamente: — Boa sorte.
Ele volta correndo para casa. O mundo parece mais brilhante, as pessoas mais ruidosas, as ruas mais compridas, a cor do dia de um azul invasivo, cintilante. O cavalo ainda está parado ao lado da carroça, o cachorro agora se enrosca numa soleira. Bulbos, pensa ele novamente. Já ouviu essa palavra antes. Sabe o que significa, o que indica.
Com certeza não, ele pensa, ao entrar na rua de casa. Não pode ser. Não pode. Aquilo — não vai dizer o nome, não permitirá que a palavra se forme, nem mesmo em sua cabeça — não circula na cidade há anos.
Alguém estará em casa, ele sabe, no momento em que chegar à porta da frente. No momento em que abrir a porta. No momento em que entrar. No momento que chamar, alguém, qual- quer um, haverá de responder. Alguém há de estar lá.
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