No recém-lançado romance de não-ficção Neve na Manhã de São Paulo, o historiador e escritor José Roberto Walker parte do affair entre Oswald de Andrade e Maria de Lourdes Castro para reconstruir em detalhes a transformação da São Paulo de cem anos atrás, de vilarejo provinciano em metrópole pulsante. “Em 1890, quando Oswald nasceu, a cidade tinha 60 mil habitantes. Quando os eventos que eu narro acontecem, já eram 500 mil. Eles assistiram a um crescimento explosivo que eu não sei se tem paralelo em outro lugar do mundo”, afirma Walker em entrevista ao Aliás. “Esse crescimento altera a forma de se ver o mundo, e talvez isso atinja mais as mulheres, porque a vida delas era mais reclusa.”
Conhecida como Daisy ou Miss Cyclone, a Maria de Lourdes com quem Oswald se relacionou entre 1917 e 1919, além de uma personagem irresistível, era um símbolo dessa mudança no papel da mulher. Menor de idade, estudante da tradicional Escola Normal, ela nutria pretensões literárias e estava disposta a quebrar as regras sociais para se encontrar com a nata da boemia intelectual paulistana da época. “As mulheres passam a participar da vida da cidade, trabalhar, compor a renda ou manter sozinhas as próprias famílias, e isso evidentemente dá um papel que elas não tinham possibilidade de ter antes. A Cyclone era um caso extremo desse processo, porque era uma pessoa de natureza livre, libertária”, acredita Walker.
Garçonnières eram apartamentos que os rapazes mantinham para levar suas amantes, e o livro gira em torno de um desses imóveis, de propriedade de Oswald de Andrade, localizado na rua Líbero Badaró, 452. Para redescobrir o apartamento, o historiador vasculhou os registros da Prefeitura e plantas arquitetônicas enquanto escrevia o livro. “Você parte do princípio que em São Paulo tudo foi demolido. Por acaso, esse prédio ficou e está lá mais ou menos intacto”, comemora ele.
Entre os frequentadores mais assíduos do covil de Oswald estavam o poeta Guilherme de Almeida; Inácio da Costa Ferreira, o Ferrignac, ilustrador modernista; e os escritores Léo Vaz, Menotti del Picchia e Monteiro Lobato. O narrador-personagem de Neve na Manhã de São Paulo é Pedro Rodrigues de Almeida, nas palavras de Oswald “o maior fracassado de sua geração” e também seu amigo mais próximo, que chegou a publicar alguns textos mas acabou como delegado no interior. A escolha de Walker pelo ponto de vista de Pedro se deveu ao fato de ele ser o mais próximo da persona que o autor queria construir para a figura do narrador. Também por isso, ele tem a maior carga de ficção no livro, embora o autor tenha se preocupado em não trair a personalidade de cada um. “Eu tinha muito material e poderia escrever um documentário, mas as explicações mais profundas de tudo o que aconteceu não estão no âmbito da documentação histórica”, diz.
A única mulher da trupe foi a própria Daisy, que monopolizou as atenções da garçonnière. Até mesmo Monteiro Lobato, o mais velho do grupo, já casado e consagrado, ficou tão impressionado pela garota que, sem querer, deixou os originais de Urupês na garçonnière. No livro, um dos personagens brinca que o escritor havia esquecido os papéis por premeditação. “Assim volta hoje para buscar o livro e se atordoar um pouco mais. A Cyclone, como os grandes tóxicos, é um seguro estimulante da literatura moderna.”
Recriando a atmosfera da São Paulo da época, o romance conta, por exemplo, a relação da 1.ª Guerra Mundial com o surgimento das feiras livres, solução provisória para a escassez de alimentos que acabou virando marca registrada da cidade. Em outros episódios, capital é paralisada em decorrência da greve geral de 1917 e da chegada da gripe espanhola, no ano seguinte. Se a epidemia mostra como a guerra atingiu em cheio o Brasil, a revolta operária discute como o movimento trabalhista se organizou desde então. “A greve foi dominada pelos anarquistas e isso é uma diferença crucial, pois eles eram favoráveis à autogestão, não admitiam estruturas de espécie nenhuma”, ressalta Walker.
No vívido relato do livro, entre os muitos personagens históricos citados, estão figuras das mais variadas, como Júlio Mesquita, jornalista e diretor do Estado; os líderes industriais Rodolfo Crespi e Jorge Street; a atriz francesa Yvonne Mirval; e o pai do futebol brasileiro Charles Miller.
Oswald e Daisy consumam seu amor em 25 de junho de 1918, quando se registrou a menor temperatura da história da cidade, 3,2ºC negativos, e a safra de café foi prejudicada pela geada. O trágico romance culminou na morte de Daisy em decorrência de um aborto malsucedido. “Ela foi a única a levar suas ideias e convicções às últimas consequências. A transgressão masculina fazia parte do jogo, a das mulheres nem se concebia”, analisa Walker. “A história transcorreu dessa maneira porque ela era indomável, fruto dessa mudança que havia na cidade.”
A existência da garçonnière mostra como o modernismo brasileiro já se manifestava muito antes de 1922. “Ela indubitavelmente reuniu um grupo de jovens literatos que imediatamente depois foram marcantes, ocuparam o primeiro plano aqui. Essas interações que ocorrem no livro forjaram, não sei se um grupo, porque nunca foi coeso, mas um diálogo entre um conjunto de jovens e isso de fato desembocou na Semana de 22”, defende Walker. Enquanto o covil de Oswald, um lugar de gestação do modernismo, esteve ativo, os literatos mantinham um diário coletivo publicado posteriormente sob o título O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo. O caderno foi encerrado a lápis pela letra de Daisy, Cyclone ou Maria de Lourdes, resumindo aquele período: “E tanta vida, bem vivida, se acabou.”
*André Cáceres é jornalista, escritor e autor do livro 'Cela 108' (2015, ed. Multifoco)
Neve na Manhã de São Paulo Autor: José Roberto WalkerEditora: Companhia das Letras 368 páginas R$ 59,90
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