O trem faz uma rápida parada em um vilarejo, Pozonegro, antigo centro minerador de carvão que agora definha. Um homem vê, pela janela, uma placa de “vende-se” em uma casa e subitamente desembarca, começando ali uma nova e inesperada vida. O que leva Pablo Hernando a alterar seu destino num rompante é o que a escritora e jornalista espanhola Rosa Montero busca apresentar em A Boa Sorte, romance agora lançado pela Todavia. Segundo ela, trata-se de um “thriller existencial, sem assassinatos e muitos mistérios”. Também uma reflexão sobre o bem e o mal, e a necessidade que muitos têm de escapar de suas próprias vidas. Daí a profusão de segredos que envolvem os habitantes daquele lugar – como a excêntrica Raluca, que pinta quadros de cavalos e ostenta uma capacidade de buscar luz na escuridão e de recomeçar a cada nova catástrofe. Hernando foge de si mesmo por desespero, não por coragem, mas por necessidade. É o que Rosa explica nessa entrevista feita por e-mail.
Pablo viu seu mundo desmoronar e precisa reconstruí-lo. Após uma pandemia, é o que se passa conosco agora? Bem, foi uma dessas coincidência incríveis que acontecem na literatura e, embora eu tenha terminado o romance no início de janeiro de 2020, quando ainda não sabíamos nada sobre a pandemia, apenas que havia uma coisa estranha e ela nos adoecia, a história tem coincidências, como o fato de os personagens se fecharem em casa. Também Pablo usa muito lenços desinfetantes, o que chega a ter sua graça, não? O coitado, lógico, tem um transtorno obsessivo compulsivo, mas olha que coincidência. O fato é que, no romance, um apocalipse afundou o mundo, ceifando vidas, algo que a pandemia também provocou para muitos, mas foi pura coincidência.
Por que, nas várias histórias que se entrelaçam no livro, a família tem um peso especial? Dizia o poeta William Wordsworth: “A criança é o pai do homem”, querendo nos dizer que a infância é a origem do que vamos fazer quando adultos. Mas acredito que se pode escapar dessa origem condenatória. Assim, Pablo teve uma infância que teve de abandonar para ir à luta. E isso é um sinal muito evidente de que, de alguma forma, vamos carregar uma pedra na mochila ao longo da vida.
Seus personagens são sempre pessoas estranhas, mas ainda assim os leitores se identificam com eles. Descobri isso há dois anos, quando percebi que todos meus personagens são pessoas muito diferentes e extravagantes, com vidas estranhas. Mesmo assim, os leitores se identificam com eles. Isso é um mérito porque, para fazer com que se identifiquem, coloco por baixo de toda essa estranheza os valores mais profundos de cada um deles, até aquele ponto da consciência em que nos igualamos. É curioso porque nessa revelação percebi que há autores que têm personagens típicos da vida mais comum, e outros escritores que, ao contrário, focam em personagens grandiosos, incomuns. É o caso de Vladimir Nabokov ou Patricia Highsmith. Acho que sou mais parecida com eles, pois crio meus personagens os sentindo, tocando aquela carne macia e básica que todos compartilhamos, a medula do que somos.
Uma frase do livro diz que as religiões foram inventadas para dar ao mal um lugar no mundo, dar-lhe sentido para poder suportá-lo. Escrever sobre o mal permite que você o suporte? Não apenas suportar, mas permite tentar me proteger para que não me destrua. Escrevo sobre o mal, sobre a dor, sobre a morte para que essas ideias e realidades aterrorizantes não me destruam. Para que eu possa colocá-los em um lugar onde eu possa respirar. Como dizia o pintor abstrato francês Georges Braque: “A arte é uma ferida feita de luz”.
A amargura e a raiva são os grandes males contemporâneos? Não acredito. A falta de sentido da vida é algo que muitas pessoas não suportam porque vivemos uma rotina muito brutalizada e distante de nós mesmos. Então, dar conteúdo à própria vida é complicado.
Por que considera este seu livro mais ambicioso? É o mais maduro. Foi muito difícil de fazer, a estrutura é complicada, um verdadeiro quebra-cabeça feito milimetricamente para que cada linha, capítulo, parágrafo vá construindo várias facetas que levam o leitor de erro em erro até a resolução final. Acredito que toco na essência da vida, do mal e do bem, do amor e da dor, da vida e da morte.
Em algum momento da vida, todos nós queremos ser outra pessoa? Olha, não sei se todos, espero que sim. Viemos ao mundo com tantos desejos, sonhos, com todas as possibilidades de ser tudo. Quando criança, podemos ser astronautas ou trapezistas. Mas o tempo, que é uma espécie de jardineiro maluco, vai podando nossos galhos, o que nos deixa trancados em uma vida muito pequena. Mesmo que seja uma existência maravilhosa, da qual gostamos, ou uma vida extraordinária, como a de Marie Curie ou de Alexandre o Grande, sempre será muito menor que a dos nossos desejos. Então, acredito que sim, todos vamos desejar em algum momento que a nossa existência seja a do outro. Poder ter outras vidas, mesmo que apenas para escapar do confinamento a que estamos definitivamente atrelados, é um grande desejo. Mesmo que eu goste da minha vida.
A Boa Sorte Editora Todavia 256 págs R$ 69,90 R$ 44,90 o e-book
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