Jair Bolsonaro define-se como um conservador. Afirma até que sua posição política é compartilhada pela nação que ele governa. “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base”, declarou o presidente na 75.ª Assembleia Geral da ONU, em 2020. O conservadorismo bolsonarista, no entanto, parece fora de esquadro. Valores conservadores básicos como prudência e moderação não são congruentes com o líder de massas que no Dia da Independência do ano passado subiu em um carro de som para dizer que não acatará mais decisões do Supremo Tribunal Federal. Líderes que flertam com a ruptura – como faz Bolsonaro e como fez o ex-presidente americano Donald Trump, ambos colocando em dúvida o processo eleitoral – não podem ser associados ao conservadorismo. Há uma categoria mais precisa para abrigá-los: o reacionarismo. “Os reacionários não são conservadores. À sua maneira, são tão radicais quanto os revolucionários”, esclarece o cientista político americano Mark Lilla, da Universidade de Columbia, na introdução de A Mente Naufragada (Record), coletânea de ensaios sobre o “espírito reacionário”. Se o pensamento revolucionário sonha com um futuro redentor, os reacionários voltam-se para o passado, ansiando pela restauração de uma perdida Era de Ouro. Essa nostalgia política costuma se expressar de forma beligerante. A depender das circunstâncias, o reacionário pode combater a democracia, as liberdades individuais, os direitos das minorias, o livre mercado, ou tudo isso ao mesmo tempo. Ele é um inimigo da modernidade – ainda que, como nota Lilla, seja ainda um produto do mundo moderno.
De acordo com Lilla, a ideia de “reação” foi contrabandeada da física (terceira lei de Newton: “a uma ação sempre se opõe uma reação igual”) para o vocabulário político no século 18. Na Revolução Francesa, durante o Terror, quem esboçasse oposição aos jacobinos era prontamente chamado de reacionário. Entre os primeiros críticos da revolução, Lilla já aponta a distinção entre reacionarismo e conservadorismo. O francês Joseph de Maistre construiu a narrativa arquetípica do pensamento reacionário: uma ordem perfeita (a monarquia) é corroída por uma elite intelectual perversa (os filósofos iluministas) e então desmorona no caos. No campo do conservadorismo, posiciona-se o irlandês Edmund Burke, que já antes do Terror alertava para a perigosa arrogância dos revolucionários que julgavam dominar os rumos da história. Ao longo dos séculos 19 e 20, a esquerda empregou a palavra “reacionário" como um insulto corriqueiro, diluindo seu poder conceitual. Mas um documento fundamental da esquerda revolucionária traz uma definição expressiva e sucinta do reacionarismo. No Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels dizem que reacionário é aquele que busca “girar para trás a roda da história”. Para sentir o poder dessa metáfora, não é preciso compartilhar a fé marxista em uma história que segue linearmente na direção do comunismo. Está destilada aí a essência do reacionarismo: um esforço inútil para reverter o tempo.
Certo, há circunstâncias nas quais conservadores também desejam parar a roda implacável da história. O conservadorismo, afinal, lamenta a perda de certas tradições. Para ficar em um exemplo pitoresco, o filósofo inglês Roger Scruton opôs-se à lei que, a partir de 2005, proibiu a caça da raposa em seu país. Mas o conservador não recusa o presente, nem deseja a restauração de ordens sociais defuntas. Scruton dizia ter aprendido com a poesia de T.S. Eliot que “devemos ser modernos na defesa do passado e criativos na defesa da tradição”. O reacionarismo não rende tantos estudos acadêmicos quanto, por exemplo, o hoje tão falado populismo de direita (uma exceção, no Brasil, recorre aos dois conceitos no exame crítico do governo Bolsonaro: o recém-lançado O Populismo Reacionário, de Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro). No entanto, ele constitui uma corrente de pensamento própria, com consistência ao longo da história moderna. É o que diz o cientista político Richard Shorten, da Universidade de Birmingham, em The Ideology of Political Reactionaries (A Ideologia dos Reacionários Políticos), lançado este ano. Divergindo de Lilla – e também do filósofo russo-britânico Isaiah Berlin –, Shorten faz de Burke um patriarca da tradição reacionária. A partir de uma análise retórica de Reflexões sobre a Revolução Francesa, Shorten conclui que nesse texto clássico o autor irlandês apresenta os três pilares do reacionarismo: o sentimento de indignação, a ideia de decadência e a crença em uma conspiração.
Shorten busca destrinchar esses três elementos nos escritos de reacionários notórios, de Hitler a Nigel Farage, líder do Ukip, partido de direita britânico que encampou com ardor a campanha pelo Brexit. Há diferenças substantivas na linha política de cada reacionário. Para ficar em exemplos da política americana examinados por Shorten: Sarah Palin, ex-governadora do Alasca, defende uma política externa intervencionista e uma economia ultraliberal, enquanto Trump é isolacionista e protecionista. Ambos, porém, propagam a ideia de que o trabalhador americano foi traído pelo establishment político e dizem e que a nação mais poderosa do mundo está em franca decadência. Menos sistemático na sua abordagem do que o livro de Shorten, A Mente Naufragada debruça-se sobre a obra de pensadores mais respeitáveis – caso do filósofo Leo Strauss, judeu alemão exilado nos Estados Unidos nos anos 1930 que exerceria uma notável influência sobre os chamados neoconservadores americanos. Em 2003, chegou-se a aventar que o pensamento de Strauss, morto 30 anos antes, fora decisivo para a invasão americana do Iraque – hipótese que Lilla descarta como “fora de propósito”.
Strauss é uma leitura proveitosa – e exigente – para conservadores, liberais ou progressistas que não se deixam limitar por dogmas. Na literatura e nas artes, também encontramos reacionários de talento – como Nelson Rodrigues, que deu a um livro de crônicas o título O Reacionário. Defensor ardoroso da alma russa contra os avanços da modernidade ocidental, Fiodor Dostoiévski bem pode ser caracterizado como um reacionário. O crítico americano Irving Howe, homem de esquerda, afirmou que até que o reacionarismo do gênio russo lhe dava uma vantagem literária sobre o conservadorismo do escritor britânico (nascido na Polônia) Joseph Conrad: os dois autores escreveram romances que dissecam a mentalidade revolucionária, mas Conrad trata seus personagens radicais com um “desinteresse frio” que não se encontra no sempre intenso Dostoiévski. Na ação política, é mais difícil encontrar reacionários de valor. Estadistas de direita do século 20, como Winston Churchill, Margaret Thatcher e Ronald Reagan, podiam exibir traços reacionários, mas navegavam entre conservadorismo e liberalismo. Em suas versões extremas, o reacionarismo político conduz ao fascismo, ao terrorismo islâmico, ou ao novo imperialismo russo de Vladimir Putin, exaltado, aliás, pelo ideólogo reacionário Alexander Dugin, cuja filha foi assassinada em um atentado de contornos ainda nebulosos. Mesmo quando sobe ao poder em um país democrático, o reacionário parece incapaz de resistir à tentação da ruptura. Tal é o caso de Trump: o comitê do Congresso americano encarregado de investigar a invasão do Capitólio em 2021 vem levantando evidências de que o então presidente apoiou a malta que tentou reverter na marra a vitória eleitoral de Joe Biden.
Em um artigo de 2017 na revista New York, o jornalista e blogueiro conservador Andrew Sullivan tomou a ascensão do populismo de direita mundo afora como mote para um mergulho na bolha dos reacionários americanos. Entrevistou acadêmicos respeitáveis, trumpistas militantes e malucos que defendem teses conspiratórias na internet. Sullivan estendeu um olhar compreensivo ao isolamento cultural que leva as pessoas ao reacionarismo, mas não foi condescendente com a ideologia que as inspira. Seu contraste entre reacionários e conservadores vale por uma condenação definitiva à visão de mundo dos primeiros: “Se conservadores são pessimistas, reacionários são apocalípticos. Se conservadores valorizam as elites, reacionários destilam desprezo por elas. Se conservadores acreditam nas instituições, reacionários querem explodi-las. Se conservadores tendem a resistir a mudanças radicais, reacionários querem uma revolução”.
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