Antes das trevas, veio a luz. Às vésperas do golpe de 64, foi lançada no Brasil a Enciclopédia Barsa, a primeira do gênero totalmente produzida aqui.
Não sei se o Clube Militar festejou, mesmo intramuros e sem alarido, a quartelada de 60 anos atrás; mas hoje, apesar do atraso, faço questão de brindar a chegada ao Bananão, naquele março fatídico, do mais bem-acabado subproduto do Iluminismo: a enciclopédia, o Livro dos livros, o pai, não dos burros, pois a estes já atendem os dicionários, mas o tutor dos ignorantes e curiosos.
A ideia foi de uma empresária americana, naturalizada brasileira e casada com um diplomata do Itamaraty. Dorita Barrett era filha do editor executivo da Encyclopaedia Britannica no Brasil. Para coordenar o ambicioso projeto, Barrett convidou o lexicógrafo Antonio Houaiss, que, na década seguinte, cuidaria de outra empreitada bancada por ela, a enciclopédia Mirador.
Houaiss montou uma equipe de 257 colaboradores, com o máximo de estrelas da intelectualidade nativa dispostas e disponíveis na época. Sérgio Buarque de Holanda incumbiu-se do verbete sobre São Paulo (não o santo, claro), Jorge Amado escreveu sobre o cacau, Gilberto Freyre sobre o Recife, etc., consoante o modelo britânico original, lançado em 1768 e depois mantido por seus novos donos norte-americanos (Sears Roebuck, 1920, Universidade de Chicago, 1943).
Comprar os 32 volumes da Britannica foi um de meus sonhos de consumo tornado realidade. Consultava-os sem parar. Para tanto, precisava tirar a bunda da cadeira e ir até a estante, mas que prazer o mergulho naquela suma gnosiológica me proporcionava! Com a internet e o Google, a bunda sossegou – mas, e o prazer que se perdeu?
Voltemos, contudo, à nossa sessentona Barsa. O historiador e crítico de cinema Alex Viany, a quem coube a curadoria dos textos sobre cinema, me convidou para dividir com ele alguns verbetes. Caiu-me nas mãos a história do cinema alemão, que eu tinha fresca na cabeça por obra de duas recentes mostras retrospectivas nas cinematecas do MoMa e do MAM. Fiquei mais prosa do que besta com a proposta, e não me saí mal. Custei a passar pelo crivo de Otto Maria Carpeaux, um dos consultores de Houaiss; Antonio Callado era o outro. Carpeaux cismou com a minha avaliação do imenso talento, consensualmente aceito, de Leni Riefenstahl, a cineasta oficial da Alemanha nazista.
O sábio Carpeaux foi um dos intelectuais mais inflexíveis com quem convivi, em redações e na vida. Sempre nos demos maravilhosamente bem, mas sua birra com a Alemanha pós-Weimar e o que em parte lá se produziu em matéria de cultura me surpreendeu algumas vezes. Não chegamos a discutir muito por causa de Riefenstahl, mas só graças ao bom senso de Callado e Houaiss ela não foi banida da história do cinema alemão por mim resumida na enciclopédia.
O Golpe em nada afetou o sucesso da Barsa. Sua tiragem inicial (45 mil coleções) logo se esgotou.
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