Quem primeiro estrilou foi o escritor mexicano Jordi Soler. Radicado em Barcelona, viu o filme Roma no cinema e abominou as legendas em castelhano que a Netflix sobrepôs às imagens para exibição no mercado de língua espanhola. “É uma coisa paternalista, ofensiva e provinciana”, manifestou-se pelas redes sociais, em defesa do público espanhol e sua capacidade de entender perfeitamente o que os atores do filme falam, em espanhol mexicano e misteca.
No dia 8, o diretor de Roma, Alfonso Cuarón, entrou na briga. Ao jornal El País o cineasta mexicano acusou o acréscimo de legendas um procedimento “paroquial, ignorante e ofensivo aos espanhóis”.
Cuarón tem razão: as várias formas de espanhol e os dialetos deveriam ser respeitados e celebrados, não suprimidos. Ou, pior ainda, escamoteados pela deletéria prática da dublagem. Isso vale, a meu ver, para todas as línguas. Dos males, o menor: a legenda ao menos nos permite confrontar a fala original com a tradução, sobremodo dificultando a interferência da Censura.
No dia seguinte à espinafração do cineasta, a Netflix, produtora do filme, tirou as legendas das cópias exibidas nas salas espanholas e eliminou uma das duas opções de espanhol, no menu do streaming. Restou apenas o tradicional “Spanish”, que reproduz literalmente a fala dos atores na tela.
Com essa polêmica, outra envolvendo Roma acabou em segundo plano. Seria o aclamado e premiadíssimo filme de Cuarón, à disposição simultaneamente na TV e nos cinemas, um “cavalo de Troia” para destrambelhar o circuito de salas de exibição?, conjecturou o crítico da revista Cahiers du Cinéma Jean-Michel Frodon.
A controvérsia gerada pelas legendas em castelhano desenrolou-se no concreto, a especulação de Frodon não passa, por enquanto, de uma hipótese, que só o futuro poderá confirmar. Mas ela faz sentido e corrobora a desconfiança de que a Netflix pode afetar negativamente o comércio de filmes como a Amazon afetou o mercado livreiro tradicional.
Volto às legendas. Os povos de língua espanhola não costumam ter dificuldade para entender os demais herdeiros do castelhano. Daí não fazer sentido, e ser até ridículo, traduzir “mamá” (espanhol mexicano) por “madre” (castelhano), como fizeram, na Espanha, nas legendas de Roma, para grande irritação de Soler e Cuarón. Mais bisonho só o “putana”, gritado a plenos pulmões por uma atriz, numa antiga comédia italiana, que o responsável pelas legendas, por pudicícia ou recomendação da Censura, traduziu, inutilmente, por “megera”.
Voltando ao Roma, nem sei se a referência à guloseima de chocolate mexicana Gansito precisava ter virado “ganchito” (um ibérico snack de queijo) nas legendas espanholas, mas o fato é que virou, mas isso não me parece tão relevante quanto a troca de nomes para, supostamente, dar mais sentido a uma fala, como vez por outra acontece nas traduções para o cinema, em qualquer parte do mundo.
Numa comédia de O Gordo e o Magro, o disco de Bing Crosby que em determinada cena Stan Laurel queria ouvir e Oliver Hardy não deixava, ganhou, entre nós, um inesperado intérprete brasileiro. Antes tivesse sido Francisco Alves ou Mário Reis; mas nunca Roberto Carlos, que nem era nascido quando a cena foi filmada. Na reprise de Sinfonia de Paris, nos anos 1960, as Montanhas Rochosas mencionadas na letra de Our Love Is Here to Stay viraram Serra da Mantiqueira.
Traduzir legendas é, de certo modo, mais complicado do que traduzir um texto corrido. A legenda tem métrica própria e o sentido pleno do que é dito na tela nem sempre cabe no espaço e no tempo de leitura disponíveis.
Os profissionais do ramo brasileiros podem ganhar menos, mas são mais prestigiados do que seus equivalentes americanos, cujos nomes não merecem destaque na tela como os daqui. Tal depreciação talvez se deva, em parte, ao fato de os americanos, donos da atual língua franca e do cinema hegemônico, não apreciarem filmes legendados. Acham que a leitura das legendas distrai a vista, e é verdade. Elas desviam a atenção até de quem conhece o idioma falado na tela.
Há outros componentes em jogo. Até ranço de colonialismo, segregacionismo e racismo já detectaram na confecção de legendas; como se sua produção atendesse menos às necessidades de inteligibilidade do que a critérios ideológicos e identitários.
Essas e outras questões são discutidas à exaustão nos vários ensaios que ocupam as 544 páginas de Subtitles (subtítulos ou legendas, em inglês), editado em 2004 por dois canadenses, o cineasta Atom Egoyan e o historiador de cinema Ian Balfour. Um dos ensaístas convidados, Amresh Sinha, professor da Universidade de Nova York, define as legendas como “extraterrestres na república do cinema”; e é assim que elas são, de modo geral, tratadas no livro.
O iraniano Hamid Neficy, defensor do cinema com sotaque, credita a padronização visual (imagens fáceis de entender, poucos diálogos, muita ação) imposta por Hollywood às cinematografias do mundo inteiro à má vontade do público americano com filmes legendados. A “banal universalidade” do cinema zap-zap seria, portanto, um efeito colateral da legendagem.
Subtitles também contém histórias divertidas sobre equívocos e gafes cometidos por tradutores. Mas uma das que mais gosto não consta do livro. Aconteceu na França. Num filme de guerra americano, soldados apontam para uma colina e gritam “Tanks! Tanks!”. Só os muito distraídos ou ignorantes da plateia não perceberam que os soldados não haviam gritado “merci, merci”.